O segredo do sucesso: bata no negro

A edição nº 17 do “Jornal do MNU”, de set./out./nov. de 1989, traz dois textos sobre passeata de adeptos da Igreja do Reino Universal (IURD) realizada em Salvador, no dia 14 de agosto de 1989. A passeata era uma manifestação política de grande hostilidade contra as religiões de matriz africana e tachava seus seguidores de “criminosos e infanticidas”.

Por Edson Lopes Cardoso  Do Brado Negro

O texto da página 2, “Guerra santa”, assinado por Lindinalva Rosa de Oliveira (Naná) é mais completo que o da página 9, “Salvador repudia ameaça nazista”, quase uma nota de rodapé não assinada.

Lindinalva de Oliveira rebateu as acusações da IURD, denunciou manipulações que enredavam a população negra da periferia e bairros populares e descreveu fato recente ocorrido no Cabula, que ela associou de pronto à passeata da IURD:

“No Cabula, em São Gonçalo, existe uma igreja desse ramo (IURD). E ela reuniu seus fiéis que, como se estivessem possessos, com baldes e vassouras, lavando a rua, gritavam: SAI, SATANÀS! Varriam, jogavam água no asfalto e quando chegaram em frente ao portão do ILÊ AXÉ OPÔ AFONJÁ empunharam as vassouras e entraram agredindo todos que ali se encontravam trabalhando, que tiveram que se defender da melhor forma. Imagine a que ferocidade essas forças mal direcionadas estão levando as pessoas. Essa gente, que não respeita nem a privacidade de seus vizinhos, invade domicílios numa comunidade onde existem creche e escola primária, faltando com o respeito devido à presença de crianças de tenra idade e senhoras de idade avançada, numa atitude antidemocrática.”

Como se pode ver, já era perceptível em 1989, há quase três décadas, com registros na imprensa negra, que a IURD constituía um desafio à sobrevivência das religiões de matriz africana. Ontem, no Rio de Janeiro, organizadores da “X Caminhada contra a Intolerância Religiosa”, Ivanir dos Santos à frente, ressaltaram que somente em 2016, no Rio, foram registrados 759 casos de intolerância.

Quando se tem o luxo de poder contar com o poder judiciário, coisa aparentemente proibida aos negros no Brasil, é possível alimentar a esperança de que agressões ao direito de crença possam vir a ser punidas de alguma forma. Mas a justiça no Brasil trabalha com critérios extremamente rigorosos que lhe permitem separar a humanidade da não-humanidade. Dignidade, liberdade, direitos e justiça diferenciam o humano do inumano.

Sendo as coisas assim, a receita é simples: bata no negro que o bolo cresce. Dos anos 80 para cá, assistimos ao grande empenho dos progressistas de esquerda para estimular a ação política dos neopentecostais. O fortalecimento das alianças políticas com forças “progressistas” garantiu-lhes a institucionalização e sempre mais acesso ao dinheiro público, amplas redes de comunicação e de diversificados empreendimentos comerciais.

O resultado está à vista de todos. Após alguns mergulhos purificadores no rio Jordão, entes santificados estimulam a invasão de terreiros de candomblé e umbanda para supliciar mães e pais de santo.

O mote inquisitorial é a coação absoluta e milicianos, narcotraficantes e pastores de bíblia e fuzil na mão caem matando. Tudo filmado, documentado, para melhor semear o terror.

Bacana a resistência, a caminhada, mas não há sinais de que alguma instância com poder para tal se disponha a tomar providências que possam atender os interesses do povo de santo diante da extrema brutalidade. Temos que reconhecer que o ódio que os neopentecostais expressam pela religiosidade com origem na África tem uma importante função política, porque quanto mais nos odeiam mais se dão bem nesse país maravilhoso.

Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo

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