O Silêncio dos Inocentes – Por Adriano Senkevics

Imortalizado pelo seu emblemático papel, o experiente ator Anthony Hopkins interpreta o psicólogo – e psicopata – Dr. Hannibal Lecter no clássico O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, EUA, 1991), dirigido por Jonathan Demme. Sendo o filme relativamente antigo, por que discuti-lo atualmente? Seguindo o intuito deste blog, pretendo chamar a atenção para algumas questões de gênero ainda bastante pertinentes que são levantados neste thriller. Além de ser uma excelente obra – não por acaso, abocanhou as cinco principais estatuetas do Oscar – é também uma fonte rica para se discutir o papel e as expectativas sobre as mulheres.

Clarice Starling, encenada por Jodie Foster, é uma agente do FBI em treinamento. Compenetrada nos seus deveres, Clarice é incumbida pelo seu chefe Jack Crawford (Scott Glenn) a extrair informações do conhecido e temido Hannibal Lecter, a fim de somar pistas para encontrar o assassino em série que atormenta a polícia estadunidense: o psicopata Buffalo Bill (Ted Levine), conhecido por capturar e matar mulheres que vestiam manequim 48, com o intuito de emagrecê-las e extrair suas peles.

 

 

Quando o psicopata captura a filha de uma senadora republicana, o caso ganha maior repercussão. Participando da investigação, Clarice acompanha sua equipe, mas apenas ela tinha acesso à fonte imprevisível de informações que era o Dr. Lecter. Esse, interessado nas profundezas da psique humana, aceita fornecer pistas desde que Clarice revelasse, em contrapartida, aspectos da sua conturbada infância e juventude. Em um jogo psicológico, Clarice avança na investigação do crime em voga, porém, o rebuliço em torno de Dr. Lecter é a brecha para ele fugir da prisão.

Por ser um clássico, essa trama complexa já é bem conhecida. Não pretendo, aqui, comentar o óbvio: o roteiro bastante imbrincado, a trilha sonora de Howard Shore (o mesmo compositor de Seven e a trilogia O Senhor dos Anéis) e a brilhante atuação de Anthony Hopkins, responsável por ter dado vida a um dos vilões mais carismáticos do cinema, a meu ver comparável ao personagem Coringa de Heath Ledger. Seus olhares fixos, seus trejeitos de um psicopata que dá precisão milimétrica às suas manias, são marcantes, assim como os diálogos com Jodie Foster, recheados de provocações.

 

O que mais vale, nesse emaranhado todo, é a sensibilidade que o filme teve em suas sutilezas – às vezes nem tão sutis – com a personagem Clarice Starling. Não é por acaso que é uma mulher. E jovem. Clarice é uma novata, sequer dispunha do diploma. Tinha de enfrentar continuamente a discriminação sexista para se afirmar no ambiente que pretendia seguir como carreira. Parecia ser subestimada o tempo todo pelos homens ao ser redor, teve que aguentar insinuações sexuais do psicólogo responsável por Hannibal Lecter, e até mesmo sofreu algum grau de violência sexual, quando um dos prisioneiros jogou-lhe sêmen, após ter pronunciado certas asquerosidades.

Porém, em virtude de sua condição feminina, Clarice foi escalada a interpelar o Dr. Lecter. O raciocínio adotado pelo FBI foi de usá-la como uma isca: uma vez que Dr. Lecter estava farto de ser interrogado por homens detetives e psicólogos, para os quais ele não fornecia informação alguma, quem sabe ele poderia ceder diante de uma jovem moça? Desenvolve-se, assim, uma relação com conotações afetivas, as quais se tornam mais explícitas na sequência Hannibal (2001), e amplamente sustentadas por uma hierarquia: Hannibal esteve no controle da situação o tempo todo. “Enviaram-me uma estagiária?”, questionou o psicólogo, diante da jovem Clarice.

A pouca importância dada à Clarice, assim, esteve amparada em dois aspectos: por ser inexperiente e por ser mulher. Por outro lado, foi do conjunto dessas duas características que Clarice dá a cartada final. Em público – para o contingente de pessoas sedentas por ouvir verdades – Hannibal mentia. Diante de Clarice, quando ela ignorou os protocolos e aceitou contar de sua vida pessoal, Dr. Lecter passou informações relevantes. Mais como um professor que um colaborador. Contava meias-verdades, esperando que Clarice deduzisse o resto – conhecia, pois, seu potencial. Além disso, tomou sua experiência pessoal como trampolim para desvendar o caso.

A detetive Clarice Starling em sua contínua luta para se afirmar como uma policial competente no âmbito de um sexismo institucional.A detetive Clarice Starling em sua contínua luta para se afirmar como uma policial competente no âmbito de um sexismo institucional.

A palavra-chave era “cobiça”. O serial killer procurado pela polícia cobiçava as moças que capturava e matava. Conforme destaca Dr. Lecter: “Nós cobiçamos aquilo que vemos todos os dias”. Clarice sabia o significado de ser cobiçada. Por ser atraente, em um ambiente masculinizado, ela era constantemente cobiçada. Sua experiência como mulher, no bojo de um sexismo institucionalizado, foi a arma para que ela fosse mais longe no crime, desvendando as pistas necessárias para se chegar ao assassino, ao passo que a indiferença dos demais detetives, que praticavam o sexismo mas não o vivenciavam, não os permitiu entrar na pele das moças capturadas. Dessa forma, Clarice é a única a descobrir a residência de Buffalo Bill.

E foi também sua aparente fragilidade – repito: aparente – que lhe salvou. Pois, se os/as leitores/as bem se lembram, o assassino poderia ter matado Clarice, se quisesse. Seduzido por ela em sua psicopatia, preferiu aproveitar sua desvantagem quando ambos se encontravam em uma sala escura no sótão de sua casa; ele portando óculos de visão noturna. Estremecendo de medo, tanto pelo momento quanto pela inexperiência, Clarice esteve a poucos instantes de ser morta. A tara do assassino, porém, foi seu ponto fraco. Em um movimento rápido, Clarice descarrega a arma.

Capa original do longa-metragem O Silêncio dos Inocentes.Capa original do longa-metragem O Silêncio dos Inocentes.

Essa foi, portanto, a provação pela qual Clarice teve de passar. Alheio aos assédios dos demais – e, ao mesmo tempo, sem encarnar o papel da heroína que exala sensualidade –, Clarice provou que seu diploma, como ela mesma chegou a dizer, não provinha de uma faculdade “espera-marido”. Sua autenticidade, decerto, foi o que Hannibal mais apreciou na novata. Prometeu inclusive não ir atrás de Clarice, “pois o mundo fica muito mais interessante com você nele”.

É verdade que as dificuldades que Clarice teve de enfrentar são típicas de uma trama de suspense hollywoodiano. São características, ainda, daquilo que se convencionou chamar de glass ceiling, o “teto de vidro” que muitas mulheres enfrentam em variadas instituições para se afirmar como uma profissional séria, dedicada e competente. Em geral, o salário das mulheres é menor que o dos homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo e com grau de escolaridade semelhante. Encaram também maiores obstáculos para ascender na profissão.

Esse lugar de submissão, em uma sociedade machista como a nossa ou como aquela expressa pelo filme, é reforçado pelos olhares de canto de olho e a insinuações verbais e sexuais. Cruelmente, tenta-se impor um lugar que a mulher deve ocupar na sociedade: o lugar daquela que não foi feita para tomar espaços públicos, para se destacar em profissões valorizadas e para competir com seus colegas de sexo masculino. No entanto, a jovem Clarice Starling é a lição de que esse lugar de submissão deve ser rotineiramente questionado.

 

Fonte: Ensaios de Gênero

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