O sujeito desidentificado e a liberdade negada à maioria minorizada

Que o Brasil é um país fundado a partir da concepção de superioridade racial do europeu branco, da subjugação e extermínio dos povos americanos originários e do esmagamento desumano e selvagem dos africanos sequestrados de sua terra original, não é certamente novidade alguma. O próprio Estado brasileiro reconhece essa sua barbárie original até os mais diversos pensadores e pesquisadores das ciências humanas e sociais denunciam este processo.

Por Richard Santos*, do Vermelho

Imagem retirada do site Vermelho

De Clóvis Moura com sua obra revolucionária, “Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilha”, lançada pela primeira vez em 1959, e inicialmente rechaçada pela intelectualidade branca de esquerda – caso do Partido Comunista e sua editora, da qual o sociólogo fazia parte, ao atual e seminal Achille Mbembe com “Políticas da Inimizade”, lançado em 2017. Sem contar uma série de trabalhos e pesquisas como as minhas e de demais colegas, que trazem a denúncia da desidentificação do sujeito negro, da desumanização e violência permitida de nossos corpos, mentes e estéticas. Como diria Jacques Ranciére, existe uma disputa pelo domínio dos signos que formam a imagem, é a estética política e o domínio de suas significações que estão em jogo. É disso que se trata quando vimos a ausência de sujeitos negros na televisão, principalmente, em situação de dignidade. É mais diretamente relacionado a isso o que assistimos quando a maioria dos personagens negros em uma novela ou série está associada ao crime e à ilegalidade. É a permissão subjetiva ao enjaulamento, ao massacre de seus corpos, sendo dada. É a constituição de um imaginário negativo de nossas figuras e a significação de perigo e violência associada aos corpos negros, aos corpos da Maioria Minorizada.

É justamente o construto Maioria Minorizada que uso para tratar deste processo dialético a que estamos inseridos, e que resulta nos violentos desaparecimentos, extermínio de nossa gente negra e indígena. Ao longo de nossa formação nacional vimos a homogenização das histórias, dos processos sociais, das micro histórias, a massificação do aniquilamento da gente negra e indígena sem que isso se torne uma tragédia nacional e/ou mesmo comova a audiência que impassivelmente assiste sentada ao corpo amarrado ao poste e com seu silêncio ajuda a apedrejá-lo. Ficamos inertes diante do fuzilamento de jovens que saiam para passear num final de semana a tarde – jovens negros; do estudante de medicina que voltava para casa após a aula – homem negro; da dona de casa arrastada como latas de goiabada pelo carro da polícia – mulher negra; do fuzilamento sumário e decaptações de seus corpos por membros das forças de segurança do Estado – corpos de indígenas que lutavam por suas terras; intimidação de militares a comunidades tradicionais – povos quilombolas; e por final, mas não por último, o assassinato de uma vereadora numa das mais importantes capitais brasileiras – mulher negra.

É a formação do imaginário social a construção da representação do negro como negativo e perigoso, e a consolidação deste processo racial alijador vindouro desde a formação do estado brasileiro, que não muda e se traduz nas imagens e/ou negação das imagens e estética repercutida pela mídia em âmbito nacional. Como denuncia Abdias do Nascimento e formula Lourenço Cardoso, existe uma branquitude acrítica e uma branquidade crítica, que à esquerda e/ou à direita legitimam o poder branco e suas consequências na vida comum brasileira.

Desde esta concepção racializada e branca do espaço social é que percebemos as atrocidades cometidas contra os não brancos e, também, os atos em apoio à unidade na diversidade, progressistas, primando por reproduzir signos que reforçam a branquitude e a exclusão. Contra este processo de exploração histórico aqui denunciado vimos surgir uma série de políticas públicas de inclusão, jovens articulados denunciando, criando alternativas e se empoderando, ainda assim é preciso mais, é preciso que também os não negros articulem ações e reflexões sobre si, seu lugar social e acreditem na “comunização” de suas atitudes, criações, e percepções. Desconstruir o que tem sido erguido por séculos e que se transforma numa espécie de terrorismo de Estado, leva tempo e requer a ação e unidade daqueles que crêem numa sociedade mais igualitária e plural.

*Richard Santos é professor do Centro de Formação em Artes , CFA, e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, IHAC, da Universidade Federal do Sul da Bahia. Membro da Nação Hip Hop Brasil e da UNEGRO, é pesquisador do MECACB, Grupo de Estudos Comparados México, Caribe, América Central e Brasil, é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Está lançando o livro “Branquitude e Televisão. A nova (?) África na TV pública”, pela editora Gramma, nas lojas a partir de junho de 2018.

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