O trabalho das detetives de feminicídios pelo mundo

Enviado por / FonteBBC

O feminicídio – o assassinato de mulheres e meninas por causa de seu gênero – é a forma mais extrema da violência contra a mulher, mas em muitos países não há registro do número de casos.

A BBC conversou com três mulheres que fazem trabalho de detetive para identificar feminicídios e obter justiça para as vítimas.

Gulsum Kav iniciou uma campanha para acabar com o feminicídio em 2010, um ano depois que o corpo de uma adolescente, Munevver Karabulut, foi encontrado em uma lixeira em Istambul, na Turquia. A polícia levou mais de seis meses para rastrear o suspeito, levando a protestos nas ruas da cidade.

Um dos objetivos de Gulsum era entender quantos dos homicídios que ocorrem na Turquia estão relacionado à violência contra mulher. Outro objetivo foi dar apoio à família de Munevver quando o caso foi a julgamento. “Temos um slogan hoje, ‘Você nunca andará sozinha’, que veio disso”, diz ela.

Mas logo Gulsum e suas colegas ativistas no grupo We Will Stop Femicide (Vamos acabar com o feminicídio, em tradução livre)se viram assumindo o papel de investigadoras. “Tudo começou quando chegou uma carta de uma família que acreditava que sua filha havia morrido em circunstâncias suspeitas”, diz ela.

O marido de Esin disse que eles foram para a área para uma caminhada e um piquenique, e que ela escorregou no penhasco. As autoridades inicialmente aceitaram essa história, mas a família não aceitou, já que Esin havia voltado recentemente com o marido depois de se separar e dizer que queria o divórcio.

A equipe de Gulsum encomendou uma análise independente, e o relatório provou que não era fisicamente possível cair do jeito que ela caiu e apontou que ela deveria ter sido jogada. Isso levou à condenação de seu marido à prisão perpétua por homicídio.

Desde esse primeiro caso, a equipe já trabalhou em mais de 30 suspeitas de feminicídio.

“Muitas vezes temos que reunir provas nós mesmas e trabalhar como a polícia”, diz Leyla Suren, advogada voluntária do grupo.

Outro caso foi o de Yagmur Onut, uma estudante universitária que foi baleada no pescoço em 2016. Seu namorado alegou que sua morte foi um acidente, mas a mãe de Yagmur, Sevgi, acreditava que sua filha havia sido assassinada e entrou em contato com o We Will Stop Femicide para obter ajuda.

“Elas me disseram que a luta começa agora”, diz Sevgi. “Comecei minha luta junto com elas.”

Sevgi segura uma foto de sua filha/BBC

Em janeiro de 2022, o namorado foi condenado por assassinato e sentenciado a 16 anos de prisão.

“Quando você examina o passado de Yagmur, você vê que ela não é uma jovem que faria brincadeiras com armas, mas tivemos que lutar por seis anos para provar isso”, diz Leyla.

O Supremo Tribunal do país agora vai analisar os recursos. A promotoria argumenta que o réu deveria ter sido condenado por um crime mais grave (assassinato premeditado), enquanto a defesa argumenta que o crime pelo qual ele é condenado já é muito forte.

Embora as autoridades turcas tenham começado a divulgar dados sobre o número de mulheres assassinadas no país, Gulsum diz que o número oficial é sempre inferior ao calculado por sua organização.

Ela diz que é impossível separar sua vida pessoal dessa luta, mas vale a pena criar um país onde as mulheres estejam seguras. “Não vamos parar, não vamos desistir até que as mulheres vivam com direitos iguais, em liberdade.”

Contar os corpos no necrotério

Naeemah Abrahams lidera há 20 anos uma equipe de pesquisadores que estuda o feminicídio na África do Sul.

Enquanto ativistas de outros países geralmente coletam informações analisando reportagens, Naeemah e sua equipe do Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul (SAMRC) começam seu trabalho no necrotério.

“Precisamos ir além de olhar para casos que já estão no sistema judicial porque, caso contrário, isso deixa de fora muitos casos em que a polícia já decidiu que não vai investigar, ou outros casos que a polícia não pegou”, ela diz. “Contar corpos é o melhor lugar para começar.”

Naeemah Abrahams criou um método de pesquisa para mapear os casos/BBC

Nos necrotérios estaduais de todo o país, os coletores de dados empregados pelo SAMRC examinam meticulosamente os relatórios de patologia.

Primeiro, determinam se uma mulher foi assassinada, depois procuram outras características, por exemplo a forma como ela foi morta e evidências de uma briga ou estupro.

“Depois tentamos vincular o arquivo a uma investigação policial. Mas, em muitos casos, não encontramos nenhuma e, mesmo que haja, muitas vezes a polícia não encontrou um criminoso”, diz ela.

“Então passamos a fazer entrevistas com a polícia, coletar dados sobre o perpetrador para que possamos começar a identificar melhor o tipo de feminicídio que foi – se foi um feminicídio de parceiro íntimo ou feminicídio sem parceiro”.

No Dia Internacional da Mulher, a equipe de Naeemah publica os resultados de sua última pesquisa sobre feminicídio, que analisa os dados de mulheres assassinadas em 1999, 2009 e 2017.

“Nossa esperança é que o governo sul-africano assuma nosso método investigativo de começar no necrotério”, diz ela.

Naeemah espera uma mudança rápida agora que o governo pediu à sua equipe que elabore uma estratégia de prevenção de feminicídio para o país.

Para Naeemah, esse trabalho é garantir que os casos de feminicídio sejam devidamente contabilizados e que a Justiça funcione para todos.

“Fazemos isso para mudar a vida das mulheres”, diz ela.

‘Tornamos o feminicídio visível com mapas’

Um grupo de mulheres pesquisadoras no Equador coleta dados sobre feminicídio, mas também encontrou uma maneira de relembrar a vida das mulheres que foram assassinadas.

O Equador é um dos 18 países da América Latina e do Caribe que adotaram leis para criminalizar o feminicídio, segundo a ONU. Isso significa que as taxas de feminicídio agora estão sendo oficialmente registradas. Mas, como em alguns outros países, grupos de direitos das mulheres dizem que os números oficiais são muito baixos diante da realidade.

“Decidimos começar a registrar os casos sistematicamente para que tivéssemos dados para depois questionar as instituições do Estado”, diz Geraldina Guerra, presidente da Fundação Aldea.

“Por meio de nossos contatos locais em todo o país, conseguimos identificar casos de feminicídios suspeitos desde o início, às vezes muito antes que a polícia ou a mídia descubram”, diz Nicoletta Marinelli, outra integrante da equipe, que mora em Quito.

O grupo rapidamente começa a investigar, por exemplo, rastreando os últimos movimentos da mulher morta e estabelecendo se ela já havia sido vítima de violência doméstica.

Para começar, a Fundação Aldea fez mapas para comparar o número de mulheres mortas em diferentes regiões, mas depois levou a ideia um passo adiante.

Agora eles constroem “mapas da vida”, como eles os chamam, que colocam as memórias da mulher em um mapa mostrando o parque onde ela passeava, seu café favorito, o abrigo de animais onde ela costumava ser voluntária ou o estádio onde ela uma vez viu seu cantor favorito se apresentar.

“Os mapas tornam-se então ferramentas sociais, trabalhamos com as famílias para povoá-los: marcamos os espaços que essas mulheres ocuparam através das vozes e memórias daquelas que ficaram para trás”, diz Nicoletta, que coordenou a iniciativa.

Os mapas estão disponíveis no site da fundação e o objetivo é tornar a questão do feminicídio visível, mas também relacionável. “Isso está acontecendo nas ruas de sua cidade, ruas que você conhece e anda todos os dias”, dizem eles.

Miriam ajudou a criar o mapa de vida de sua mãe/BBC

Com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e como parte da Iniciativa Spotlight para erradicar todas as formas de violência contra mulheres e meninas, eles pesquisaram e desenharam mapas para três cidades do Equador.

Em Cuenca, cidade ao sul da Cordilheira dos Andes, o mapa da vida homenageia Maribel Pinto, que foi brutalmente esfaqueada 113 vezes em novembro de 2020.

Maribel – uma ativista do movimento negro e mãe de cinco filhos – nasceu em uma área rural, mas se tornou uma profissional do sexo para sobreviver, depois de se mudar para Cuenca. Ela morreu nas mãos de um mecânico de 25 anos, que mais tarde foi considerado culpado de feminicídio e preso por 34 anos.

Miriam, sua filha, ajudou a construir seu mapa com alguns dos locais que trazem lembranças de dias mais felizes – como a sorveteria ao lado da catedral da cidade.

Locais como esses são marcados no mapa da vida da vítima como um link clicável. Aqui, as pessoas são apresentadas com gravações de áudio de parentes, breves descrições e fotos explicando a ligação da vítima ao local.

“Nós costumávamos vir a este lugar quando ela tinha um pouco de dinheiro sobrando, então sempre me lembrarei dela”, diz a jovem de 23 anos, que acabou de ter um filho.

“Esses mapas reconstroem as vidas que foram ceifadas, mas também mostram a dimensão social do problema”, acrescenta Geraldina. “Há irmãos e irmãs, filhos e filhas, avós, mães e pais deixados para trás… e parece que não falamos sobre isso.”

O grupo espera que a personalização dos números por meio dos mapas da vida ajude a iniciar conversas sobre o tema do feminicídio. Também acha que os mapas podem ajudar advogados e juízes a entender melhor e enquadrar casos de feminicídio.

“A violência prospera com o silêncio e o feminicídio continuará enquanto nos calarmos”.

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