Mas a praça diante da igreja homenageia um dos principais traficantes de africanos escravizados da Bahia. Seu túmulo, na verdade, está em destaque dentro do templo, já que ele foi o responsável por trazer a imagem que permitiu o culto ao Senhor do Bonfim no Estado.
Em meio ao debate sobre homenagens a traficantes de seres humanos retirados da África — que ganhou nova força com os protestos de movimentos antirracistas nos Estados Unidos e na Europa neste ano — um grupo de historiadores decidiu jogar luz sobre esta e outras ligações esquecidas de homenagens, ruas e locais históricos de Salvador com a escravidão.
Salvador foi o segundo maior porto de desembarque de africanos nas Américas durante a vigência do comércio transatlântico de pessoas escravizadas, atrás apenas do Rio de Janeiro. Estima-se que mais de 1,2 milhão de africanos chegaram à Bahia nos chamados navios negreiros.
A iniciativa dos historiadores deu origem ao site Salvador Escravista, que mapeia homenagens controversas, homenagens reparadoras e também lugares esquecidos, onde ocorreram episódios importantes da história da população negra da cidade.
“O propósito do site não é simplesmente mudar nomes de ruas ou retirar monumentos, mas isso poderia, sim, vir como resultado”, diz à BBC News Brasil Felipe Azevedo e Souza, professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e um dos realizadores do projeto.
“O que queremos é um debate maior sobre políticas públicas voltadas para a memória da cidade, que sejam mais democráticas e mais plurais.”
O projeto já inspira historiadores de outros Estados, como Pernambuco, Goiás e Rio Grande do Sul, a fazer iniciativas semelhantes.
Os organizadores também pretendem criar um aplicativo que transforme os verbetes do site em um percurso turístico que possa dar mais informações aos visitantes sobre o lado menos conhecido dos personagens e monumentos da capital baiana — e do país.
A BBC News Brasil reúne aqui algumas dessas histórias:
O traficante de escravos que decorou a Igreja do Senhor do Bonfim
O português Teodósio Rodrigues de Faria foi capitão de um navio mercante da Índia por anos e, já com fama de “grande homem do mar”, na década de 1740, se estabeleceu em Salvador, onde passou a investir no comércio — incluindo o de pessoas.
Ao que tudo indica, ele já era devoto do Senhor do Bonfim, que dava nome a um de seus barcos. Segundo o historiador Cândido Domingues, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), o navegante invocou a proteção do Cristo crucificado durante uma tempestade marítima em viagem a Lisboa. E, em retribuição, levou para Salvador uma imagem do Senhor do Bonfim semelhante à que existia na cidade portuguesa de Setúbal.
“A imagem foi eventualmente colocada na Igreja do Senhor do Bonfim, que estava sendo construída na Colina Sagrada. Segundo registros de outros historiadores, Teodósio também investiu bastante na decoração da Igreja. Na pintura do teto se vê um painel em que um grupo de marinheiros entrega aos santos e anjos um quadro representando o navio durante a tempestade, e a vela do navio”, disse Domingues à BBC News Brasil, em entrevista por telefone.
A devoção e o investimento na igreja também lhe renderam lugar de destaque na irmandade do Senhor do Bonfim, que reunia outros comerciantes influentes na sociedade da época.
Quando morreu, em 1757, Teodósio Rodrigues foi enterrado dentro da Igreja, que é um dos principais cartões postais de Salvador e palco de uma de suas maiores festas inter-religiosas, a Lavagem do Bonfim.
O capitão português também dá nome à praça que fica diante da igreja e a uma rua próxima, tamanha é a sua importância na sua fundação.
“Só que, nos anos 1750, Teodósio Rodrigues de Faria também atuou intensamente no tráfico de africanos, um detalhe que costuma ser omitido ou posto em dúvida nas homenagens e reportagens sobre ele feitas durante a festa do Bonfim”, diz o historiador.
Em sua pesquisa, Cândido Domingues encontrou registros de navios negreiros que Farias possuía em sociedade com outros traficantes da época e até uma prestação de contas em que ele reivindica escravizados que lhe pertenciam em um navio cujo dono morreu ao chegar da África.
“A importância de conhecermos e discutirmos isso é dar a possibilidade a fieis e cidadãos de compreender outras histórias que estão no nosso passado. A ideia não é necessariamente desfazer esses monumentos. Mas, conhecendo as outras partes da nossa história, podemos registrá-las e fazer a crítica necessária”, afirma Domingues.
O Elevador construído com dinheiro do comércio ilegal de africanos
O famoso Elevador Lacerda, que liga as partes alta e baixa da capital baiana e chegou a ser o maior do mundo à época de sua inauguração, em 1873, não foi construído para homenagear um traficante de escravos, como outros monumentos agora polêmicos.
O projeto inicialmente foi chamado de Elevador Hidráulico da Conceição, e era considerado uma ideia um tanto extravagante. Só em 1896 passou a se chamar se chamar Elevador Antonio de Lacerda, em homenagem ao seu idealizador.
No entanto, segundo a historiadora Silvana Andrade dos Santos, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a obra provavelmente não teria sido feita sem a riqueza acumulada pelo pai de Lacerda, o negociante português naturalizado brasileiro Antonio Francisco de Lacerda, no tráfico ilegal de africanos, ou seja, mesmo após a proibição por lei.
“Pela imagem que pude construir a respeito de Antonio Francisco de Lacerda através da minha pesquisa, ele parece um especulador. Sempre que via uma oportunidade de fazer um bom negócio ele fazia e, quando achava que aquilo já não era pra ele, saía”, disse à BBC News Brasil.
“A historiografia tem demonstrado que cinco anos antes da proibição oficial do tráfico de pessoas, quando o Brasil começou a negociar os tratados com a Inglaterra, a demanda pela mão de obra escravizada aumentou muito. Isso fez com que muitos negociantes entrassem no comércio para obter altos lucros. Pelo que eu consegui perceber, esse foi o caso dele.”
A pesquisadora encontrou registros de que Lacerda, o pai, era sócio em ao menos duas embarcações fretadas para fazer viagens negreiras para África no final da década de 1830 — a importação de escravizados africanos para o Brasil já era proibida desde 1831.
As embarcações foram apreendidas e condenadas pela Marinha britânica. Por isso, os registros de seus donos permaneceram arquivados.
“A documentação sobre o tráfico ilegal é justamente para as viagens que não deram certo. Quantas outras deram certo e não sabemos?”, questiona Silvana.
De acordo com ela, era comum que comerciantes da época entrassem no tráfico, realizassem algumas viagens, ganhassem um bom dinheiro e investissem em outros negócios que tinham.
No caso de Antonio Francisco de Lacerda, o lucro foi usado em empreitadas como uma estrada de ferro, a maior fábrica de tecidos do país no século 19, o Banco da Bahia e a Companhia de Transportes Públicos. Seus filhos foram enviados para estudar em países como Suíça e Estados Unidos, algo que só estava ao alcance de família abastadas.
Em 1856, o filho, Antonio de Lacerda, volta ao Brasil sem concluir o curso de Engenharia que havia começado nos Estados Unidos e assume os negócios do pai. Alguns anos mais tarde, ele consumiria boa parte da fortuna familiar na construção do Elevador.
Discursos da família reproduzidos em jornais da época, no entanto, dão a entender que o Lacerda filho não acreditava ter recebido o devido reconhecimento por sua obra. Um de seus netos reclamou, inclusive, de seu ressentimento por ter que pagar a própria passagem, que, na época, custava o equivalente a R$ 0,10.
O grito de liberdade eternizado nas ruas 13 de Maio
Desde o final dos anos 1970, parte do movimento negro brasileiro questiona a importância do dia 13 de maio de 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, em contraposição à narrativa de que a abolição da escravidão teria sido uma generosidade da família real para com a população negra.
No entanto, as ruas de Salvador contam outra história. Em seu mapeamento, os historiadores do site Salvador Escravista encontraram sete ruas Treze de Maio na cidade, quase todas elas em bairros periféricos, como Liberdade e Paripe, cuja maioria da população é negra.
Segundo a historiadora Iacy Maia Mota, professora na Ufba e autora de uma dissertação sobre as reações à abolição na Bahia, a nomeação das ruas dá uma pista sobre a importância real que a data teve na vida das milhares de pessoas cujas vidas foram impactadas pela lei.
“Eu tenho esse debate com ativistas do movimento negro sobre a necessidade que temos de valorizar o 13 de maio. Não podemos esvaziar o significado dessa data. Ela foi um resultado da luta abolicionista que as pessoas celebraram. Elas foram para as ruas, desafiaram os ex-senhores, afirmaram sua liberdade”, disse à BBC News Brasil.
A lei Áurea, segundo Mata, rompeu com a estratégia de abolição gradual da escravidão. Até então, a libertação dos escravizados ocorria através de leis como a do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1875). Mas ambas impunham condições à liberdade, como a indenização dos ex-senhores ou um tempo extra de servidão.
Mas as disputas jurídicas sobre a legitimidade da escravidão começaram a crescer no país, assim como o movimento abolicionista.
“Quando o Brasil se viu internacionalmente isolado em relação à manutenção escravidão – já que foi o último país das Américas a acabar com ela – e o abolicionismo virou um movimento de massa, os legisladores brasileiros se viram forçados a resolver o que eles chamavam de ‘a questão servil'”, diz a historiadora.
O resultado disso é que a lei promulgada em 13 de maio, que tramitou rapidamente no Parlamento e foi sancionada pela princesa Isabel, é a única sobre o tema a ter somente dois parágrafos: um acabando com a escravidão e outro revogando todas as disposições em contrário.
“Os escravocratas baianos sabiam das discussões no Parlamento, mas não imaginavam que seria aprovada a abolição imediata, sem indenização a eles e sem um dispositivo que obrigasse os libertos a continuar trabalhando. Eles foram surpreendidos e reclamaram muito”, conta Iacy Mata.
Muitos dos recém-libertados, por sua vez, passaram a se recusar ao trabalho nos moldes da escravidão. Jornais da época tinham relatos de escravistas que foram abandonados por seus cativos no dia 13 de maio – alguns retornavam apenas para informar que não trabalhariam mais para ninguém.
“Entre 1888 e 1889 explodiram pedidos pelo uso da força policial em várias cidades da Bahia, inclusive Salvador, para conter os libertos porque havia muito samba, festas nas ruas e recusa a voltar às fazendas. Isso era entendido como insubordinação aos ex-senhores”, conta Mata.
No momento da abolição, a Bahia abrigava cerca de 10% da população escravizada do Brasil. Os beneficiados pela lei Áurea eram identificados nos registros policiais como “13 de maio 88 recém-libertados”.
“Sabemos que a aprovação da lei não abalou as estruturas fundacionais do Brasil, porque não trouxe inclusão para os ex-escravizados na sociedade”, reconhece a historiadora.
“Mas ela colocou em xeque, em alguma medida, a hierarquia racial. Porque a liberdade, em tese, já não tinha cor. Foi uma mudança importante para aquelas pessoas. E o caráter popular da lei pode ser visto na geografia da cidade.”
Mas, se nas periferias da capital baiana encontram-se algumas ruas Treze de Maio, nos bairros nobres uma única avenida – entre a Graça e a Barra – é dedicada, de certo modo, à abolição da escravidão. Chama-se Princesa Isabel.
O barão que tentou frear a abolição
Também homenageado com uma longa rua no bairro da Calçada, na Cidade Baixa, o barão de Cotegipe foi um dos principais antagonistas da princesa Isabel no tema da abolição — mesmo fazendo parte de seu governo.
O barão, cujo nome era João Maurício Wanderley, foi um dos principais representantes dos interesses escravagistas na política brasileira. Ele também dá nome a ruas em cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Paraná e até de um município no Rio Grande do Sul.
“Ele foi uma figura relevante em todo o país, mas sua memória pública não dá ênfase ao fato de que ele foi o escravocrata mais poderoso dos últimos anos do Império. E tomou muitas medidas em prol da perpetuação da escravidão”, disse à BBC News Brasil o historiador Felipe Azevedo e Souza, da Ufba.
Como presidente do Conselho de Ministros, uma espécie de primeiro-ministro durante a regência da princesa Isabel, ele propôs a lei dos Sexagenários, que libertava os escravos com 60 anos ou mais, mas os obrigava a pagar indenização ao senhor e a trabalhar por mais três anos para compensá-lo.
“Cotegipe acreditava piamente que a escravidão não era, por si só, um problema. O problema eram os maus senhores, porque os bons senhores iriam cuidar bem dos escravizados. Ele usava isso como argumento para adiar a abolição”, conta Souza.
“Em 1887, quando se debate o fim da pena de açoite aos escravizados, ele se posiciona contra, dizendo que é uma maneira de o senhor educar o escravizado como um pai educa um filho ‘dando-lhe uma palmada’.”
Segundo o historiador, o barão havia sido alçado ao posto, em 1885, justamente para refrear as tendências abolicionistas da princesa. O resultado disso foi que um aumento da repressão violenta às manifestações pela abolição, que ganhavam força. Líderes foram presos e caçadas humanas a escravizados que fugiam de fazendas, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, foram promovidas.
“O Exército foi convocado para atuar na repressão, e isso também gerou uma crise para o regime. De um lado, boa parte dos jovens oficiais, prendados em filosofia e imbuídos de um certo idealismo, eram abolicionistas. De outro, os oficiais mais velhos queriam o reconhecimento de heróis nacionais pela vitória na Guerra do Paraguai e sentiam que estava sendo reduzidos a capitães do mato”, diz Souza.
Sob pressão, o movimento pela abolição recorria cada vez mais a métodos radicais, como articular fugas coletivas de escravizados e criar quilombos urbanos para abrigá-los. E aumentava a tensão entre o barão e a princesa, que acabou conseguindo sua renúncia da presidência do Conselho dos Ministros.
Cotegipe ainda voltou ao Senado para votar contra a lei Áurea em 1888. E disse à princesa Isabel que ela libertou os escravos, mas perdeu o Império.
“O interessante é perceber que boa parte da crise que acabou por derrubar o Império foi ele mesmo que causou, justamente por ser um escravista inflexível. Foi ele que provocou uma crise com os militares e demorou para negociar com os abolicionistas e com os setores progressistas da sociedade”, conclui o historiador.
A revolta de escravizados que fez tremer o império — e foi apagada da cidade
O maior e mais importante levante urbano de africanos escravizados já registrado no Brasil ocorreu durante algumas horas entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835 em Salvador.
Em um sobrado na ladeira da Praça, no centro da cidade, cerca de 50 africanos de diversas etnias, muitos deles muçulmanos (conhecidos como imales, na língua iorubá, da África Ocidental), se reuniam quando foram cercados por forças de segurança.
Eles atacaram os soldados e dali saíram para libertar um de seus líderes, Pacífico Licutan, na cadeia pública. Enfrentaram mais soldados na praça Municipal e angariaram o apoio de outros grupos de africanos, libertos e escravizados, em um percurso por todo o centro até o Terreiro de Jesus, local onde hoje é o bairro do Pelourinho. A batalha sangrenta continuou até Água de Meninos, na Cidade Baixa, onde os africanos foram derrotados.
Em nenhum desses pontos, no entanto, há qualquer placa, monumento ou marco sobre a Revolta dos Malês.
“Mais de 20 anos atrás, eu e alguns militantes do movimento negro colocamos uma placa modesta de madeira marcando o lugar onde provavelmente a revolta começou. Não sabemos se a placa caiu ou foi retirada, mas ela não existe mais. Talvez essa tenha sido a primeira ação de demarcação da revolta na cidade”, disse à BBC News Brasil o historiador João José Reis, da Ufba, autor do livro Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835.
Após a derrota, muitos dos revoltosos foram açoitados em praça pública, presos ou deportados à África. Quatro deles foram fuzilados no Campo da Pólvora, na Cidade Baixa, em local também mapeado pelo site Salvador Escravista como um dos “Locais esquecidos”.
Mesmo africanos que não participaram do levante passaram a ser perseguidos pela polícia, e senhores também passaram a impor a religião católica a escravizados muçulmanos.
O medo de outro episódio como aquele também tomou o Império. No Rio de Janeiro, africanos escravizados que chegavam da Bahia esperavam muitas vezes por meses dentro de navios sem poder desembarcar, até que tivessem uma ficha corrida aprovada pela polícia baiana que provasse que não participaram da revolta.
Por que, então, um momento tão importante da resistência à escravidão nunca foi marcado no espaço urbano?
“Isso faz parte de um pacote de apagamento da história do negro em todo o Brasil, e aqui em Salvador especificamente. É obviamente resultado de uma celebração da nossa história que privilegia temas não negros na monumentalização ou da nomeação de logradouros públicos. Por outro lado, vejo uma certa tendência de melhora”, diz Reis.
Um projeto aprovado pela Câmara dos Vereadores da capital baiana quer nomear a estação de metrô no Campo da Pólvora em homenagem aos malês, e colocar um monumento na praça onde fica a estação.
Um grupo de pesquisadores, que reúne historiadores e museólogos de diversas universidades do Estado, também planeja um Museu da Escravidão e Invenção da Liberdade, que contemple não só o período da escravidão, mas toda a presença organização da população negra na política e na cultura brasileiras.
“É fundamental mostrar para as pessoas que os negros escravizados não se acomodaram, não aceitaram a situação de vítimas. Eles reagiram de muitas maneiras silenciosas, invisíveis, no cotidiano, mas também de maneiras barulhentas, espetaculares e espantosas, como foi a Revolta dos Malês”, afirma o historiador.
“E isso tem que ser inscrito na memória da cidade, particularmente na memória dos negros. Mas na dos brancos também, serve para todo mundo.”
Como contribuição ao site Salvador Escravista, João José Reis enviou uma pequena rua encontrada no bairro da Liberdade, conhecido por abrigar a sede de grupos culturais e políticos como o bloco afro Ilê Ayê e o Movimento Negro Unificado (MNU).
A homenagem torna o levante dos africanos de 1835 vitorioso, mesmo que não se saiba, até hoje, qual era o seu objetivo final — a rua foi nomeada Revolução, e não revolta, dos Malês.