A odisseia de um jovem negro na Universidade

Nos últimos meses tem sido uma constante falar da perda de direitos que a sociedade brasileira tem enfrentado e que se agudizará daqui pra frente. Já está claro pra quem entendeu as primeiras medidas do Governo Federal que a grande prejudicada com estas medidas será a população mais pobre, uma população majoritariamente negra. Em algumas áreas, a perda será pouca porque não houve uma melhora significativa nos últimos anos.

Quando olhamos para questão do direito à vida, por exemplo, vemos que mesmo quando as finanças estavam melhores houve uma piora significativa, pois o número de jovens negros assassinados só fez aumentar. Na área de saúde, a redução do orçamento proposta pela PEC 241, ou PEC 55, trará o fim de alguns programas que atendem à população mais pobre (como a Farmácia Popular, por exemplo), e aqui já podemos notar que as perdas serão grandes. Mas quando analisamos o direito à educação, em especial a educação superior, veremos que a perda será enorme, pois houve uma melhora sem precedentes na vida da população negra jovem.

Desde que o Brasil resolveu adotar políticas de ações afirmativas na educação superior (vale sempre lembrar que já tínhamos ações afirmativas para mulheres, pessoas com deficiência entre outros) a juventude negra começou a ter acesso a uma nova realidade, o mundo das universidades, e principalmente as públicas[1].

Como podemos ver no gráfico abaixo, a taxa de acesso da população negra aos cursos de graduação passou de 5,6% para 14,0%, entre 2004 e 2014. No mesmo período, a o aumento da população branca na graduação foi de 11,4%. Infelizmente a diferença aumentou, mas temos de continuar aplicando a Lei e tentar fazer ela cair. Importante dizer também, que quando pessoas contrárias a Lei de Cotas dizem que ao colocar um jovem na universidade via ações afirmativas o governo está tirando uma branca erra, e muito, na análise.

[1] Uma grande parte dos jovens que acessam o FIES também é negra.

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Gráfico elaborado pela Dired/Inep, com base em dados PNAD/IBGE.

Muita coisa mudou com a Lei 12.711[1], que determina que as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservem, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.Com a Lei nós conseguimos aumentar o número de jovens que entram nas universidades, mas o desafio agora é outro: como manter essa juventude lá? Por incrível que pareça, entrar na educação superior hoje é um dos menores desafios destes jovens. São muitas as questões que se colocam para os jovens que cumprem está etapa.

Antes de tratar das dificuldades que os jovens encontram na universidades públicas, temos de destacar que ainda está muito difícil pra eles terem as informações necessárias para acessar esse direito. Isso se dá, em parte, porque não há do lado das instituições de ensino uma iniciativa para chamar estes jovens para suas salas de aula, as instituições (mesmo as que adotaram cotas antes da chegada da Lei) aceitam, mas não incentivam está entrada. Algumas, certamente, se pudessem jamais adotariam as cotas raciais e sociais. Outro fator a destacar é que a maioria dos professores, que poderiam ser os principais parceiros nesta iniciativa, não incentivam seus alunos por não acreditarem neles. Acham que seria uma perda de tempo, acreditam que terminar o ensino médio pra um jovem negro e pobre já está bom demais.

Após a entrada surgem outros problemas. Podemos dizer que, em muitos casos, eles encontram um ambiente hostil, um local que parece não ter sido feito pra eles, negros e pobres. Muitos dos nossos campus não possuem restaurante universitário e nem alojamento, outros não possuem nenhum tipo de auxílio aos cotistas; alguns que dão auxílios não deixam os estudantes acumularem estes benefícios com bolsas de estudo; as bibliotecas de determinados cursos (medicina e odontologia, por exemplo) não possuem livros em quantidade suficiente porque nunca foi preciso ter exemplares para consulta – a turma toda comprava o livro; alguns cursos só oferecem aulas pela manhã ou são integrais – o que os torna impossíveis para aqueles que precisam trabalhar. Não são poucos os obstáculos materiais que se apresentam para o jovem negro pobre na universidade, que com auxílio adequado podem ser superados, ou pelo menos remediados.

No entanto, os maiores obstáculos para um jovem negro na universidade são outros: desconfiança, isolamento e racismo. Como vencer estas barreiras que são estruturais na sociedade brasileira? Soma-se a isso tudo o fato de que muitas vezes o menino ou a menina que está na universidade carrega com ele o sonho de uma família, que nunca tinha sequer vislumbrado essa possibilidade. Famílias que por décadas acreditaram que ter ensino superior não era coisa para negros e pobres, e que acabar o ensino médio e procurar um trabalho era o que podiam esperar da vida. Ou além, muitas vezes ele, ou ela, é a primeiro de uma comunidade a ter um diploma, e seu sucesso poderá influenciar outras pessoas. Esses jovens rompem com barreiras impostas ao imaginário da população, que acredita que em comunidades, ou favelas, só existam bandidos. Que dali não pode sair nada de bom, a não ser sua empregada, seu porteiro, sua manicure e etc. Uma médica, jamais!

Como se não bastasse, temos ainda uma outra questão que está deixando muitos estudantes em um dilema moral: ser ou não militante das ações afirmativas nas universidades.

Muitos estudantes que optam pelas cotas raciais para entrarem nas universidades, mas não conhecem a história de luta que está por trás deste direito e se sentem envergonhados. Acho que não podemos culpa-los por isso, todos nós somos alvo de uma campanha muita feroz contra a Lei de Cotas. Então, após entrarem na universidade, eles tentam se “diluir” na multidão para não serem excluídos de atividades, não serem alvo de chacotas e atitudes racistas e etc. Acreditem, isso tem acontecido e muito! Então fica a dúvida: entrar e lutar para que a Lei de Cotas seja aplicada de forma correta e que ajude a mais jovens negros e pobres entrarem nas universidades e desfrutem da mesma coisa que ele, mas ficar marcado como cotista. Ou entrar e ficar “escondido”, tentando passar desapercebido até o momento de pegar o diploma, muitas vezes passando por um processo de “embranquecimento” social. Tenho visto que esta não tem sido uma escolha fácil para estes jovens, mas esta é uma escolha muito pessoal. Diante destes fatos, não dá nem pra imaginar o que eles sentem quando conseguem pegar o diploma. Em seguida vem a tentativa de entrar no mercado de trabalho, mas essa é outra história.

Acho importante dizer que a luta para que tenhamos uma Lei de Cotas que funcione adequadamente para ajudar a democratização da educação superior, não é exclusividade da população negra, embora ela deva ser a protagonista por ter um histórico de lutas que vem de séculos e por conhecer, como nenhuma outra, o valor emancipatório da educação. Todos e todas que quiserem se juntar nesta luta devem ser bem vindos, mas não devem esperar 20 de novembro chegar pra atuarem conosco, para falarem do quanto somos desrespeitados, preteridos e massacrados. Venham conosco, mas saibam que a nossa luta por mais saúde, mais segurança, mais educação, mais respeito é diária, não está restrita a um mês ou a um dia comemorativo.

Um diploma, canções, gols nada disso nos tornará portadores de respeito como querem nos fazer acreditar. Não será o meu futuro título de doutor que fará com que o gerente do banco, vendedorxs de loja, vizinhos e vizinhas, seguranças de shopping me tratem com mais cordialidade e respeito.     Apesar de querer que milhares de jovens negrxs entrem na universidade, nela permaneçam e saiam formadxs, sei que não é um diploma que acabará com o racismo que sempre sofreram. Mas eles tem esse direito, e muitxs brasileirxs estão conosco nesta luta que já dura, pelo menos, 5 séculos.

A sociedade brasileira precisa compreender que quando negamos direitos a juventude negra, não estamos prejudicando uma raça, uma geração ou um grupo específico, estamos prejudicando o país, pois estamos deixando de formar milhares de médicos, professores, geógrafos, matemáticos e etc., e o Brasil não pode se dar a esse luxo. Precisamos da ajuda de todxs na construção de um país melhor.

1]Conhecida como Lei de Cotas.

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