Olhos verdes (uma história real para William Waack)

Era setembro de 1996. Eu tinha 21 anos, era recém-casado e tinha um filho recém-nascido. Estava sem emprego e sem dinheiro. Cursava o último ano da graduação de História na USP. Tinha pouca experiência profissional e havia mandado meu currículo para um sem número de escolas da capital e da grande São Paulo. Em outubro, recebi um telefonema para o início de um processo seletivo em um dos mais tradicionais colégios de São Paulo.

Por CARLOS D’INCAO, do Brasil 247

Às 15:00 de uma terça-feira eu e outras dezenas de candidatos fomos confinados em uma enorme sala de aula. Sentei-me no fundo da sala, como sempre havia feito quando era aluno. Uma senhora de avental azul entrou na sala com um pacote de provas.

O processo seletivo se iniciou com uma simples prova de conhecimentos da área de História. Fui alertado, pela mesma senhora, que qualquer erro faria o candidato ser eliminado. Com a ajuda de alguns candidatos as provas foram distribuídas e recebemos todos o tempo de uma hora e meia para responder vinte questões dissertativas de vestibular.

Uma semana e meia depois dessa avaliação fui comunicado de que havia sido aprovado para a próxima fase do processo seletivo. Agora deveria ser submetido a testes psicológicos…

Nesse momento me municiei de um enorme sentimento de desprezo por essa escola e esse sistema seletivo. Talvez isso tenha sido um mecanismo de auto-defesa, não sei… A verdade é que fui para esses testes com enorme confiança e dois dias depois fui informado que havia sido aprovado também nesse processo.

A escola estava agora entre dois candidatos – assim fui informado por telefone – e seria entrevistado pela direção da escola e o coordenador da área. Minha entrevista foi marcada para as 16:00h.

Fui de metrô até a Vila Mariana e cheguei bem adiantado, por volta das 15:30h (algo típico de São Paulo, pois o caos no transporte público nos faz ser sempre prevenidos e, por isso, por vezes chega-se muito adiantado ou muito atrasado a um compromisso, mas quase nunca pontualmente).

Quando cheguei, fui informado pela secretária que a entrevista com o outro candidato ainda não havia acabado. Isso significava que iria me encontrar pessoalmente com o meu “concorrente”. Confesso que estava nervoso. Eu precisava muito daquele emprego… Ele seria um divisor de águas para minha carreira. Tentava, entretanto, me consolar – caso não fosse aprovado – com o fato de já ter ido longe demais para alguém que nem mesmo era formado em História.

Eram 15:50h quando o outro candidato acabou a entrevista e abriu a porta da direção. Eu o conhecia de vista. Era também da USP. Diferentemente de mim, ele já era formado em História. Mais que isso… tinha mestrado e doutorado. Era um aluno da pós-graduação de um dos melhores professores daquela Faculdade, o professor Elias Thomé Salibas.

Eu já havia assistido algumas palestras desse meu “concorrente” na própria universidade. Ele era inteligente, falava muito bem e era muito bem apresentável. Quando ele me viu, abriu um sorriso e perguntou: “Ei! Você não é um bicho da História?” estendi minhas mãos, o cumprimentei e cordialmente respondi, “Sou… Você é aluno do Elias, não é…?” Ele confirmou, nos despedimos e ele partiu.

Nesse momento me senti absolutamente aliviado… Senti até uma certa euforia… Pois tinha agora a certeza de que havia conseguido aquele emprego…

Por maiores que fossem as qualidades profissionais de meu “oponente” sobre as minhas qualidades, por mais esmagadora que fosse a superioridade de seu currículo em relação ao meu, eu sabia que eu tinha conseguido finalmente aquele emprego…

Tudo por uma simples razão: meu “concorrente” tinha uma pequena diferença em relação a mim… ele era negro. E eu sabia que aquela escola – frequentada pela mais alta elite paulistana, reacionária e branca – nunca empregaria um negro como professor, principalmente porque eu, o outro candidato, era branco e de olhos verdes.

Saí da entrevista com os diários de classe, uma jornada de 32 horas aulas semanais e um bom salário. Ao longo da “entrevista” todas as minhas desvantagens se tornaram vantagens. Eu era jovem e inexperiente, assim – segundo a diretora e a coordenadora – poderia me tornar “um professor do jeito que a escola queria”.

Na verdade, fui contratado porque eu era branco e de olhos verdes e o outro candidato era negro e de olhos negros. Não nego os meus méritos pessoais de ter chegado até aquele momento. Estudava (e estudo) muito, tive esperteza e fui eloquente. Mas aquele candidato era muito superior a mim em todos os aspectos profissionais que poderíamos aplicar.

Seu único “problema” era ser negro. Fosse eu o doutor e ele o jovem promissor, meu “concorrente” não teria nem mesmo passado pelos testes psicológicos. Ele apenas foi tão longe porque apesar de ser negro, tinha um currículo excelente e era uma pessoa formidável.

Após lecionar nessa escola minha vida seguiu adiante… Mudei de cidade… Abri um cursinho na sala da minha casa que iniciou-se com apenas dezesseis alunos… Hoje sou um empresário e a escola tem mais de setecentos alunos… Seria muito fácil eu contar uma linda história de mim mesmo de “empreendedorismo” e “genialidade”…

Mas a verdade é que tudo isso só foi possível devido ao esforço coletivo de todos os professores e funcionários que trabalharam e trabalham comigo. Por acaso tive alguns méritos pessoais? Possivelmente sim… Em outros casos, alguns decisivos, tenho certeza que fui julgado pela minha aparência.

Tudo nos leva, enfim, a um final de tarde na cidade de Bauru. Estava frio e começava a garoar. Dirigia pela rua Araújo Leite em direção à minha residência. Na minha frente havia um carro BMW. Era possível ver com clareza que o condutor era branco de cabelos castanhos, sua esposa era loira e seu filho (loirinho) estava no banco traseiro apoiando seus braços entre os bancos dianteiros, certamente conversando com os pais.

O carro acelerou e ultrapassou uma carroça conduzida por um casal com seu filho fazendo o mesmo gesto do garoto da BMW, só que na carroça todos eram negros… estavam no relento e desagasalhados. Enquanto a BMW assumia a frente da carroça acompanhei atentamente a cena se fechando e se encaixando… Tudo perfeitamente… Como um contínuo processo que explicava a trágica essência desse país, dessa sociedade e de minha e de outras milhares de vidas… Vi tudo isso através de meus olhos verdes…

+ sobre o tema

Pedagogia de afirmação indígena: percorrendo o território Mura

O território Mura que percorro com a pedagogia da...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas,...

Peres Jepchirchir quebra recorde mundial de maratona

A queniana Peres Jepchirchir quebrou, neste domingo, o recorde...

Apenas 22% do público-alvo se vacinou contra a gripe

Dados do Ministério da Saúde mostram que apenas 22%...

para lembrar

spot_imgspot_img

Educação antirracista é fundamental

A inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas do país é obrigatória (Lei 10.639) há 21 anos. Uma...

Refletindo sobre a Cidadania em um Estado de Direitos Abusivos

Em um momento em que nos vemos confrontados com atos de violência policial chocantes e sua não punição, como nos recentes casos de abuso...

O homem branco brasileiro de condomínio e o ato simbólico de “descer”

No documentário Um Lugar ao sol (Daniel Mascaro, 2009), sobre moradores de coberturas, temos um clássico exemplo de como a arquitetura brasileira revela a...
-+=