Receitinhas novas para amar em tempos de cólera: Experimente!!!

Na vida de muita menina existiu um caderno de receitas antigas, herança de família. E na minha não foi diferente. Ainda que humilde, a letra era caprichosa e o papel resistente, mesmo que o tempo não descansasse no trabalho de amarelar as folhas e inchar as orelhas do livro. Cicatrizes de ideias rôtas acomodavam-se como manchas de óleo e fios secos de gema de ovo. Folheando as páginas como um álbum de fotografias, me deparava sempre com a mais melosa das receitas: Um Sonho de Casamento. É bem verdade que o gosto de glacê cor-de-rosa me revolvia o estômago, mas foram anos de ideologia açúcarada empurrada goela abaixo. E dentre os desgostos de menina, estavam as outras lições de casa: arrumar, lavar, passar, cuidar dos irmãos, ser submissa. Tentando fugir dos dissabores encontrei um pouco de refúgio na caixa de ferramentas do meu tio: uma coleção de revistas pornô. Uma dúvida me cindiu a alma… Por que para os homens o cardápio é muito mais atrevido? Desde então desconfiei que meu paladar fosse mais afeito à pimenta e ousadia.

Aquele farto repertório de corpos e putaria me deixou na dúvida, não conseguia me decidir sobre o que me mais abria o apetite: homem ou mulher? Resolvi que seria gulosa. E assim, a bissexualidade se tornou a tábua de salvação sobre a qual tentava esfaquear silenciosamente a carne maciça de uma educação repressora, machista, heteronormativa, racista, monogâmica e religiosa. Não passei incólume à dor; os anos de bulimia foram testemunhas. E ainda hoje batalho para me desintoxicar das armadilhas do romantismo. Mas não sou de todo ingrata. Certamente a comida de minha mãe tem gosto de carinho e o abraço apertado da tradicional família mineira. Se entrei numa universidade pública, minhas ideias também foram alimentadas por aqueles idos pratos de comida que ela dividiu comigo, quando me escondia no banheiro da casa da patroa… Do mesmo modo que tenho orgulho do uniforme de mecânico, cheirando a graxa do lindo pai que a vida me presenteou. Homem preto que cumpre com tanta dignidade o ofício da paternidade. E assim, entrei no curso de Psicologia da UFMG, porém o racismo que encontrei foi tanto que me afundei na depressão e tranquei o curso. A desculpa foi ajudar a cuidar do meu avô em seu leito de morte. E aquele bravo cruzeirense me aconselhou: “Minha filha, olha pra cima, tem estrela demais no céu, senão você só vai perder seu diploma, enquanto seus colegas de faculdade estão pouco se lixando pro amargo da sua alma.”

Na minha fome de mundo encontrei coragem, abri mão dos anos da austeridade evangélica e apostei na vida acadêmica. E finalmente conheci o gosto da saliva alheia num beijo. Foi numa conversa tão desfloreada: “Migo, tô querendo perder a virgindade, cê me ajuda?” E ficamos sete meses nos comendo. Mas neste tempo todo nenhum orgasmozinho sequer. Pela primeira vez bateu a dúvida: será que não gosto de homem? Passava boa parte do tempo ruminando sobre como sairia do armário sem matar minha família de desgosto. Num bastava ter saído da igreja e de casa? Tinha que ser lésbica também? Um dia atravessando uma rua no campus me deparo com um estudante angolano que era a cara do Milton Nascimento, justamente o cantor que embalava meus segredos de adolescência, nos tempos que eu só podia ouvir música evangélica. E foi então que conheci o orgasmo, infinitos. Fiquei tão viciada que num instante juntamos as escovas de dente. Os dias corriam ensolarados e num sábado qualquer ele saíra pra jogar bola com compatriotas enquanto eu toda Amelinha fiquei cuidando da vida doméstica. Na faxina corriqueira escorregou um envelope de um livro. Era um convite de casamento destinado a ele e a sua namorada, que por acaso, não tinha meu nome. Entendi que eu era a amante com quem ele vivia (!!!) Era pra eu ficar com raiva e cuspindo marimbondo, mas surpreendentemente suspirei aliviada: “Bom… pelo menos ele nunca vai poder me cobrar fidelidade”. Na moita conheci outras pessoas, paixões de passagem, até que fui flagrada. Ele tinha um conterrâneo que morava na mesma república que um amigo meu; estudante de artes plástica e gay. O amigo destilava homofobia sempre que podia. Qual não foi sua surpresa, um dia ao chegar em casa e nos ver de toalha saindo do banho num chameguinho só. Imediatamente a notícia foi parar nos ouvidos do meu namorido. Naquela ocasião a calhordice foi minha arma de defesa. Com a cara mais lavada do mundo só comentei: “Não é segredo pra ninguém que Fulano é gay e que Beltrano seu amigo vive com o juízo virado no álcool e na maconha”. E ele teve que concordar: “Bem que achei essa história meio inventada mesmo”. Nunca mais tocamos no assunto e botamos uma pedra em cima. E na surdina eu também fiz outros passeios pelo continente, fazendo do meu corpo um passaporte carimbado por várias nacionalidades.

A vida ia de vento em polpa. Eu acabara de entrar no Ações Afirmativas na UFMG e estava finalmente entendendo e curtindo os sentidos de ser negra. E meu Milton Nascimento foi um capítulo de intenso des-encanto. Com ele conheci o gozo e a beleza de ser mulher negra e desejada. Ele me colocou num pedestal, me chamava de linda com tanta frequência que acabei acreditando. Mas meu castelinho começou a ruir. Ele se atolou em dívidas em seus devaneios de business man. Minha parca bolsa de iniciação científica era o que não deixava a nossa dispensa completamente vazia. Numa véspera de feriado, um pouco antes de viajar para visitar minha mãe doente, o flagrei numa cama com uma argentina. Confesso que o que me ferveu o sangue foi ver o pacote de pão de forma aberto, junto com a muzzarela e a caixinha de suco na mesa. Pedi a ela que fosse embora e ele disse que não me cabia esta decisão. Desembestei a jorrar descontentamento. Um lampejo de ódio atravessou seu olhar e ele disse pra moça: “Pode ir embora agora”. Mal ela fechou a porta e começou a me surrar. E eu apertava suas bolas com vontade arrancá-las, mas nada segurava o homem. Ele me espancou até me deixar desacordada. Sumiu de casa e me deixou trancada por dois dias. Fiz a denúncia, virou estatística apenas. Isso foi pouco antes da aprovação da lei Maria da Penha.

Juntei os caquinhos de dignidade e fui tocando a vida. Mas depois da tempestade costuma vir a bonança. E o arco-iris reapareceu. Fiz a travessia para encontrar um tesouro que a vida me deu: Minha Monamuzinga, a Amora que há onze anos faz meus dias lúcidos e felizes. Moramos juntas na moradia da UFMG por três anos. Com ela conheci um amor de asas e raízes. E a sinceridade sempre foi nosso tapete mágico. E com ela divido os homens que mais me importaram e que mais me fizeram feliz desde então. Com ela corro mundo e corro perigo. Nosso amor é da estrada, é do vento. E sempre reencontramos o ninho. Nunca deixei de amá-la e numa esquina, conheci um cara que na altura se dizia bissexual. Ele foi minha porta de entrada para os dark room da vida, com ele compreendi meu ascendente em trans-viadagem e com ele comi muitos homens. Colecionamos tanta história absurdamente ousada. Nosso amor foi um bom clube de sacanagens. Por sugestão dele vim morar em São Paulo e fazer mestrado na USP. Mas foi desembarcar neste mar de asfalto que nosso lindo namoro aberto e à distância acabou. O meu primeiro pé na bunda foi justamente no meu retorno de Saturno. Pela primeira vez na vida perdi a vontade de comer, um nó que não desatava na minha garganta. Pôxa… Ele jogou nossa aliança de compromisso numa marginal qualquer! Queria tanto que elas repousassem eternamente no Oceano Pacífico… Terminar namoro não é coisa fácil. Comecei a ter pesadelos com a cidade. Emagrecia a olhos vistos, a pele desbotava. Certa ocsião sonhei que tinha ido no Hospital Universtário e me mandaram fazer exame de sangue. Na seringa subia um líquido ralo e escuro. A princípio desconfiamos que fosse café, mas os resultados das análises concluíram que era a água do rio Tietê… Eu apoderecia por dentro e o que mais doía foi o primeiro motivo alegado: Me disse que nunca namoraria com povo de santo e que era inadmissível meu flerte com a Umbanda… Mas hoje sou muito grata pelo tanto que nos amamos, por ele ser gay assumidamente fora do armário, por ele ser tão amigo, por me querer tão bem. Ainda hoje rachamos de dar risadas ao trocar mensagens pelo whatsapp sobre nossas saudosas putarias. Mocrube Forever!

A vida costuma ser bem generosa. Assim que me bateu à porta um lindo antropólogo. Me apaixonei imediatamente por sua negritude paraense. Dez dias depois já morávamos juntos. Era inverno. Se não estávamos na sala de aula, estávamos no quarto, entre uma página e outra nos amando. Pausa para um filme, um chocolate quente e os rounds seguiam intermináveis. Em menos de um mês foi conhecer meus pais e me pediu em namoro. Meses depois trocamos aliança de noivado. Tudo parecia perfeito, redondinho, até que não consegui mais silenciar no peito a saudade que estava da minha Monamuzinga. Ia pra Minas toda vez que podia para vê-la, para estar com ela. E depois de um par de anos de namoro, comecei a colocar em pauta a possibilidade de abrir o relacionamento. Muitas amigas diziam: “Nesse deserto de almas sedentas por um preto mágico como o seu, ninguém abriria uma relação. Você é louca.”. Devo ser mesmo bem des-ajuizada. E abrimos nossa relação num intercâmbio que fizemos nos Estados Unidos. Éramos o casal delícia e tiramos proveito disso. Menage à trois passou a ser ingrediente regular. De volta ao país, apareceram também as histórias paralelas e experimentamos todo tipo de regra in-imaginável. Homem de compromisso, com planos de casar. Sua disciplina de pesquisador me deu gás para apostar no casal preto e de sucesso acadêmico. Mas se a masculinidade negra está na mira do Estado genocida, por outro lado pode esconder privilégios nem sempre honestamente enunciados… Este casamento também passou. Encerramos um ciclo importante e dessa experiência me restou muita gratidão, algumas críticas e muito orgulho por ter arriscado e ter ousado outro modelo de relação. E como diz o Nego do Borel: “se eu não guardo nem dinheiro, que dirá guardar rancor”. Ser solteira em São Paulo e em Beagá é desbravar oportunidades. Tanto tesouro em cada pele que habitamos… Tanta gente generosa e cheia de vontade de fazer acontecer, de compartilhar corpos e histórias. A beleza dos amores secretos, de ser amante também, já que esta é uma categoria tão injustiçada. Os desafios estão postos. Eventualmente o perigo fica à espreita, e algum acidente de percurso nos desestabiliza, mas a gente tenta sacudir a poeira e dar a volta por cima. Nisto vamos reaprendendo a amar muitas pessoas com distintas intensidades e levezas. Amizade também é amar. Assim posso contar com o carinho de gente incrível, que aposta alto na mudança do mundo. E pra mim é um prazer estar na revolução preta com afeto e tesão.

Amar é também confrontar estereótipos e ideologias. Assumir uma postura Viviril, biscate ou vadia não é algo que as mulheres negras possam fazer impunimente. O fantasma da objetificação dos corpos negros é certamente um espectro que nos ronda todo o tempo. Mas não podemos nos esquivar de gozar quando e como quisermos. A vida já nos priva de tanta coisa, quantas mulheres sequer se tocam porque siririca não está no caderninho de receitas tradicionais… Por isso não banco a donzela à espera de ser cortejada. Assumo quando quero alguém e o que eu sinto; e se minha coleção de foras não é desprezível, os sim que obtive são bem maiores e valeram a pena na maior parte das vezes. (Sou bem clitoriosa, grazadeusas.) E minha liberdade sexual tem me ensinado que o problema não são minhas práticas, mas sim o julgamento das pessoas a respeito. Por isso sou aberta ao diálogo. Quero viver num mundo onde eu possa exercer minha mentalidade Piricult e onde as mulheres possam ser o que quiser, trans, deusas, putas ou amantes sem ser violentadas. Que sejamos de fato ouvidas quando dissermos sim ou não pra quem quer que seja. 


Se o tema é outras formas de amar, entendo que cada namoro aberto é um mergulho no desconhecido, num mundo em que não faltam receitas para relacionamentos convencionais; que quando muito acrescenta um ou outro ingrediente da moda, mas que no final das contas garante que a tradição seja preservada. Ainda que nas brechas e pelas beiradas, creio que estamos re-inventando o amar. Assim sigo interpelando a monogomia em sua mentira e monotonia. Do mesmo modo que abdico da maternidade compulsória. Certamente monogamia e maternidade devem ter alguma beleza, mas não é o que quero pra mim. Eventualmente ainda reciclo detalhes de receitas antigas, mas sigo perseguindo novos paradigmas. Assim, atravessar a fronteira rumo ao amor descolonizado e sem a noção de propriedade é encarar onde vive nossa força e vulnerabilidade. Depois de abrir minha relação reconheci fantasmas adormecidos, como a insegurança de ser mulher e negra, e um ciúme eventualmente canalha; mas também encontrei a coragem pra desbravar territórios inexplorados. Tenho orgulho de fazer parte de uma humilde revolução tesuda que caminha a passos de cupim, mas com potência para implodir todo o engenho patriarcal. Mas os desafios são muitos. Se estou numa relação aberta com uma mulher, sinto mais acentuado o gosto de horizontalidade e simetria de direitos. E quando estou numa relação aberta com um homem, desafio é o sabor que sobressai. Reiventar o amor numa receita heteressexual nos coloca a tarefa de fazer evaporar as desigualdades de gênero e os privilégios de ser homem. Há dias que a combinação de possibilidades resulta maravilhosa, noutros é dolorosamente intragável.

Sobre a autora

Viviane A. Pistache

Preta das Minas Gerias, com mania de ter fé na vida. Graduada em Psicologia pela UFMG e doutoranda em Psicologia pela USP. Integra o projeto Pretas Dramas, é o encontro entre a roteirista Carolina Gomes e a cineasta Renata Martins. Três mulheres negras que se reunem para pensar, refletir e produzir crítica e dramaturgia.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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