O trabalho de cuidado é a base invisível que sustenta a sociedade. Parir, criar e alimentar bebês e crianças, cuidar de idosos e pessoas com deficiência, garantir o bem-estar da comunidade — essas são tarefas essenciais para a vida social e econômica. No entanto, esse trabalho segue desvalorizado, invisibilizado e tratado como uma responsabilidade privada, empurrada para dentro das casas e atribuída às mulheres como um dever natural.
Não queremos flores neste Dia Internacional das Mulheres, queremos tarefas divididas e apoio do Estado.
A privatização do cuidado não foi um acaso. Ela foi parte da estruturação do Estado liberal moderno, que se organizou sem incorporar a provisão coletiva dessas atividades fundamentais. Em vez de garantir que a reprodução da vida fosse uma responsabilidade pública, o Estado impôs essa tarefa para as mulheres dentro das famílias, desonerando-se da obrigação e permitindo que o mercado funcionasse sem custo social.
Com isso, o cuidado se tornou um trabalho não pago ou precarizado, obrigando as mulheres a dedicar horas de seu dia a atividades essenciais, mas sem reconhecimento econômico ou político. Essa organização do trabalho aprofundou a desigualdade de gênero, tornando o tempo feminino refém das demandas domésticas e limitando suas possibilidades de autonomia.
A separação entre espaço público e privado, tão central para a modernidade, foi um dos principais instrumentos dessa desigualdade. O Estado e o mercado – espaços públicos – foram concebidos como domínios da política e da economia, enquanto a família – espaço privado – foi definida como um espaço moral e afetivo. Mas essa divisão sempre teve uma função: garantir que o trabalho invisível que sustenta a sociedade seguisse sendo realizado gratuitamente dentro de casa.
O resultado está por toda parte. Mulheres acumulam jornadas exaustivas entre o emprego e as responsabilidades domésticas, sem apoio social ou institucional. Mães solo, mulheres negras e de baixa renda são as mais penalizadas por essa lógica. Enquanto isso, o Estado e o mercado continuam funcionando como se a reprodução da vida fosse automática, sem precisar de investimento, planejamento ou redistribuição de responsabilidades.
Mas essa estrutura pode — e deve — ser desmontada. O debate sobre a desprivatização do cuidado vem ganhando força ao redor do mundo. Países como Uruguai e Argentina já criaram políticas públicas para socializar a responsabilidade pelo cuidado. No Brasil, a Política Nacional de Cuidados, sancionada recentemente, marca um avanço importante ao propor a corresponsabilização entre Estado, mercado, famílias e sociedade civil.
A defesa do cuidado como um direito coletivo, e não uma obrigação individual, é uma das pautas centrais do movimento feminista. Desde o século 20, as mulheres denunciam que não basta apenas entrar no mercado de trabalho: é preciso questionar a estrutura que define o que conta como trabalho e quem deve realizá-lo. Sem esse debate, seguimos naturalizando um sistema que esgota as mulheres e perpetua desigualdades.
A resistência a essas mudanças vem dos mesmos setores que sempre se beneficiaram da invisibilização do trabalho feminino. Aqueles que dizem defender a “ordem” e os “valores da família” são os primeiros a se opor à construção de redes públicas de cuidado. Para eles, a ordem significa que as mulheres continuem cuidando, sem direitos, sem tempo e sem reconhecimento.
Cuidar da vida não pode ser uma escolha individual, nem um sacrifício obrigatório. É uma necessidade coletiva que exige soluções coletivas. Creches públicas, serviços para idosos, licença parental igualitária, direitos trabalhistas para cuidadoras e redução da jornada de trabalho são medidas concretas para redistribuir o cuidado. Queremos políticas que garantam que todas as pessoas tenham tempo para viver, para descansar e para participar da vida pública. Queremos desprivatizar o trabalho de cuidado e coletivizar a reprodução da vida.
Se a política foi construída sobre a invisibilização das mulheres, é hora de rasgar esse pacto. O 8 de março não é só um dia de celebração — é um dia de luta. A revolução que queremos não é a do reconhecimento, da justiça e da construção de um mundo onde cuidar seja um direito, e não uma sentença.
Mayra Cotta é advogada especializada em questões de gênero, pesquisadora do Departamento de Política da New School, em Nova York, e autora de livros como “Mulher, roupa, trabalho: Como se veste a desigualdade de gênero” e “Um Ex-Amigo”