ONG da maior favela mineira emprega 300 pessoas em plena pandemia 

Enviado por / FontePor Kamille Viola, do ECOA

Kdu dos Anjos, 29, não tinha grandes pretensões quando fundou, em 2015, o centro cultural Lá da Favelinha no Aglomerado da Serra, maior favela do estado de Minas Gerais, na zona sul de Belo Horizonte. A ideia era simples: fazer uma biblioteca e promover oficinas de rap para a comunidade onde cresceu. Mas, logo no primeiro evento, preparado para receber 50 pessoas, apareceram duas mil.

A potência com que a demanda reprimida da comunidade se expressou diante da iniciativa fez Kdu perceber a oportunidade de fazer algo maior ali. Hoje, a ONG, reconhecida internacionalmente, conta com 16 oficinas semanais (entre elas inglês, espanhol, teatro, artesanato, capoeira, balé e judô), uma marca de moda reciclável e sustentável (a Remexe, que tem até filial na Inglaterra); o evento de moda Favelinha Fashion Week; a batalha de passinho Disputa Nervosa; e o grupo de dançarinos Favelinha Dance.

Com a pandemia, muitos planos foram interrompidos. Nos primeiros dias, o clima foi de luto. Mas a apatia durou pouquíssimo tempo e, hoje, em vez das 70 pessoas de tempos normais, já são 300 as pessoas trabalhando diretamente com as novas atividades de enfrentamento à pandemia que a Lá da Favelinha acrescentou ao seu rico portfólio.

A reviravolta se deu, mais uma vez, graças ao impacto das ações diante da necessidade desassistida da população. De cara, muita coisa foi adiada ou cancelada. O Favelinha Dance, por exemplo, que costuma ter uma agenda especialmente cheia, perdeu todos os eventos programados. “A gente faz formatura, festa de 15 anos, festival. Em Paris, fizemos também uma performance no Museu de Arte Contemporânea, algo que começamos a fazer este ano nos museus, mas não rolou até agora (risos)”, conta Kdu. “A gente já estava fechado com Inhotim, um outro museu da Vale que tem aqui dentro da cidade [Memorial Minas Gerais Vale]. A gente ia até para Nova York este ano. Enfim, está tudo de standby, esperando o corona passar”, lamenta ele.

Sua principal preocupação em termos financeiros era com as funcionárias da Remexe, já que os MCs e dançarinos são mais jovens e têm menos compromissos a arcar do que as costureiras da marca. Mas a tristeza durou só três dias: logo surgiu uma encomenda de jaleco para profissionais da saúde. Com a reabertura do ateliê, veio a ideia de produzir máscaras também. Com a reabertura do ateliê, veio a ideia de produzir máscaras também. “Elas repercutiram tanto que teve uma agência internacional que veio fazer foto. Aí as máscaras foram para o New York Times’, ‘Guardian’, apareceram naquela live da Lady Gaga, deu uma repercussão muito interessante”, comemora ele.

Em seguida, o rapper Djonga fez uma live e destinou R$ 100 mil para o projeto. A ideia era entregar cestas básicas na comunidade, mas a turma de Kdu já tinha conseguido muitas doações. Junto a Kika Pereira (presidenta da Associação de Moradores e produtora do Baile da Serra), Kdu organizou a distribuição de quentinhas em uma das áreas de maior vulnerabilidade do complexo de favelas, a Jurupita. “Lá é até difícil chegar internet, a gente não ia conseguir cadastrar no Google Drive, essas coisas. Propusemos ao Djonga mandar marmita para o povo da Jurupita, para os velhinhos, para as pessoas que estão em situação de alcoolismo, situação de rua.

Entrega de marmitas no projeto Lá Da Favelinha durante a pandemia  (Foto: Imagem retirada do site ECOA)

Nova frente

O novo projeto ganhou o nome de Frente Humanitária e conta com a participação do Instituto Unibanco. Além das cestas básicas e marmitas, em julho eles passaram a doar máscaras também. “A gente está distribuindo duas mil marmitas por dia, que dá 60 mil por mês. São seis mil cestas básicas por mês, com uma média de cinco pessoas por família — então a gente está alimentando 30 mil pessoas com as cestas básicas — e distribuindo trinta mil máscaras”, contabiliza Kdu. Além disso, foram entregues 20 mil chinelos e material de higiene pessoal e de limpeza.

Hoje, são 300 pessoas trabalhando diretamente com o Lá Da Favelinha, entre cozinheiras, equipe de RH e motoristas de carros maiores e menores. A ideia é gerar renda dentro da favela. “E é muito legal. A gente chega nos açougues assim: ‘Eu quero R$ 100 mil de carne para esta semana.’ O cara no meio da crise, desesperado, chega alguém de dentro da comunidade e pede isso”, diz. “Todo mundo que está envolvido é da comunidade, e as entregas são na comunidade”, celebra. A Disputa Nervosa, por sinal, vai acontecer online, com prêmio de R$ 5 mil para o vencedor.

Normalmente, o projeto envolve 70 pessoas, sendo 40 que trabalham de forma contínua e os MCs e DJs, que têm menos demanda. “E o legal é que neste momento eles estão trabalhando: estão sendo os entregadores de marmita, estão sendo as pessoas das pesquisas, dos cadastros”, conta Kdu.

Jovens participam do centro cultural Lá da Favelinha no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, a maior favela do estado de Minas Gerais (Foto: Imagem retirada do site ECOA)

Carreira musical

Em meio a tudo isso, ele ainda encontrou tempo para fazer seu primeiro álbum, “Quanto tempo hein, Kdu?!”, lançado depois de um hiato de mais de cinco anos em sua carreira como rapper. Kdu começou a rimar aos 15 anos e foi da primeira geração do Duelo de MCs no Viaduto de Santa Tereza, um dos principais eventos de batalha de rimas do Brasil. Ele já tinha três EPs na bagagem, o mais recente deles “Azul”, de 2015. Também integrou o teatro de bonecos Giramundo, tendo feito as turnês de quatro espetáculos da trupe.

O novo disco tem direção e produção musical de Rafael Fantini e participações de Djonga, Hot Apocalypse, Teffy Angel e Vini Joe, e passeia por temas como o amor, a realidade nas favelas e o tempo. “O disco fala muito do tempo das coisas, e isso cai como uma luva para um processo de quarentena, de tentar entender o tempo”, analisa Kdu, que comemora 150 mil plays no Spotify em pouco mais de um mês de lançamento. Ele fez o primeiro show em julho, que foi transmitido ao vivo do Mineirão, e participa do Festival Sarará, dia 29 de agosto, onde canta com o grupo Rosa Neon. Também participa do show do Favelinha Dance no IMuNe — Instante da Música Negra, evento sem plateia, com patrocínio da Natura, que será transmitido da comunidade em 26 de setembro.

Um dos cinco filhos de uma confeiteira e um motorista de táxi, ele cresceu na Vila Novo São Lucas, no Aglomerado da Serra, para onde seus pais foram quando ele tinha 4 anos. O lugar ficava embaixo de Vila Santana do Cafezal, a região mais violenta do complexo, que também é famosa por seus sambistas. “O nome Favelinha é um apelido dessa região, Novo São Lucas. Porque a gente falava: ‘Você mora onde?’. ‘No Cafezal’. ‘Onde no Cafezal?’. ‘Lá naquela Favelinha lá embaixo’, que era uma ocupação”, explica ele. “Eu tive muito contato com projeto social a vida inteira, eu sou cria de projeto social, fiz tudo que você imaginar: teatro, violão, natação, tênis? Quando eu não estava na escola, estava em projeto social fazendo alguma coisa”, lembra ele.

A família chegou a ter períodos de restrição. Ele se lembra, por exemplo, da época em que cada um só podia comer meio pão. Hoje, se sente realizado em poder ajudar quem está em dificuldades. “Estou bem feliz, apesar deste momento. Ter essa lembrança da infância de ter que racionar comida já dói tanto, e imaginar quem passa fome mesmo, acorda sem ter o que comer, e hoje em dia a gente conseguir alimentar 90 mil pessoas por mês é bem maior do que montar uma biblioteca para fazer shows de rap e emprestar livro para comunidade (risos)”, comemora. “Eu foco muito nessa onda da geração de renda, porque sinto que o empoderamento real vem através de grana. Senão a gente não consegue pagar passagem para ir numa reunião para falar de empoderamento. Está muito lindo ver as pessoas construindo junto e entendendo”, diz.

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