Organizações da Sociedade Civil na América Latina, direito à cidade e autocrítica já!

Em artigo, Evanildo Barbosa e Joana Barros, da FASE, expõem motivos para ampliar os interesses sobre temas que sempre desafiaram as esquerdas sociais no campo das problemáticas urbanas, criticando as receitas das “cidades-mercado” e o atual modelo de desenvolvimento

Por Barbosa e Joana Barros Do Fase

Por que as organizações da sociedade civil (OSCs) da América Latina deveriam refletir e atuar mais diretamente na defesa do direito à cidade? Por que as populações das cidades da América Latina e as potencialidades e os problemas urbanos deveriam se transformar em causas políticas relevantes e inovadoras das OSCs²?

Encorajados por essas questões, preparamos uma exposição de motivos a fim de ampliar interesses sobre temas que sempre desafiaram as esquerdas sociais, numa perspectiva do conflito e da ruptura com o status quo. As cidades estão passando por uma verdadeira explosão no seu crescimento desde os anos 60, sem que isto se traduza em melhorias concretas nas condições de vida da grande maioria da população. Sabemos que, no geral, as OSCs trazem consigo a marca do pensamento crítico sobre grandes problemas e a construção de alternativas a eles. Mas, no campo do direito à cidade, procurar responder perguntas como as feitas no início desse texto é assumir uma atitude essencial para o aprofundamento da oposição ao modelo de desenvolvimento capitalista urbano em curso.  Igualmente, para a revisão de padrões dominantes que se referem à problemática urbana em ambientes marcados pela lógica da “cidade à venda”.

O diagnóstico das cidades da América Latina é dramático e projeta um futuro duvidoso. A taxa de urbanização de países como o Brasil e do Cone Sul chegará a 90% até 2020. Nos que formam a região andino-equatorial, incluindo o México, estima-se que a urbanização irá atingir 85%. O mesmo ocorrerá no Caribe e na América Central, ainda que com uma margem percentual mais abaixo do que as demais. O que vemos então? Aglomerados de pessoas traduzidos em cifras que podem variar em até 34 % da população da América Latina vivendo em cidades com mais de 1 milhão de habitantes ³. O campeão dos problemas nessas cidades é a falta de moradia, seguida da falta de esgotamento sanitário e da alta violência. Enfim, as condições de reprodução igualitária da vida das parcelas já mais desiguais na pirâmide social são crescentemente diminutas.

É verdade que algumas políticas públicas adotadas nos últimos anos têm apontado para a redução na pobreza e nas diferenças entre certos níveis de renda. Países como Brasil, México, Venezuela, Uruguai, Panamá, Peru e Honduras apresentaram pequenas alterações aí. Mas, a estrutura fundamental das desigualdades permanece inalterada, pois a regulação pública do mercado de terras e do ordenamento do uso e da ocupação do solo segue sob domínio das corporações imobiliárias.

E o que dizer do fato de as mulheres jovens e negras serem as maiores vítimas do modelo de desenvolvimento em curso? Como não considerar o genocídio de jovens do sexo masculino que, em países como o Brasil, estão confrontados pelas dificuldades estruturais de absorção via mercado de trabalho. Durante gerações, elas e eles seguem sendo discriminadas, sofrendo preconceitos étnicos e raciais e também sendo encarceradas em sistemas presidiários falidos. Estão nas cidades e dependem cada vez mais de um tipo de agenda política que ainda sobrevive nas OSCs, pois, há muito o Estado lhes deu as costas.

 

Favela do Metrô-Mangueira, na zona norte da cidade, tem imóveis demolidos pela prefeitura do Rio (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Viver nas cidades latino-americanas é cada vez um desafio dos mais complexos na atualidade, dado que são lugares de ofertas de serviços, de lazer e também de disputa dos significados da Democracia (ou de sua inviabilidade). Mas elas têm uma magia de atração. Por que será  – ainda que tudo nos demonstre o contrário – que as cidades permanecem importantes para se tornarem e conduzirem motivos de ruptura e de transformação na cultura política?

Se a problemática urbana ganhou relevância nas últimas décadas isto não se fez sem que alguém perdesse para que outro ganhasse. O que sabemos é que são mudanças empreendidas por relações capitalistas historicamente dominantes desde a colonização e que, por sua profundidade, ajudaram a instituir uma particularidade regional perversa para a vida nas cidades e sobre o próprio esforço público de planejamento urbano. Portanto, são mudanças que imprimiram uma trajetória urbana que até aqui só se manifesta em sua versão violenta, já que se trata de um perene padrão de acumulação e de reprodução do capital sobre o espaço urbano e sobre seus atributos ambiental e urbanístico. Nesse contexto, o capital imobiliário vem, particularmente, assumindo a dianteira do chamado “desenvolvimento urbano”. O paradigma da “cidade-mercado” tem conferido às cidades da América Latina o traiçoeiro papel de reprodução do modelo urbano-industrial baseado no consumo. Este, por sua vez, é condição para continuidade da expansão do mercado global capitalista. Essa dinâmica se expande desde as cidades e adentra territórios não urbanos, já que necessita explorar de forma intensa os recursos naturais para as indústrias da mineração, agricultura, água e petróleo, o que significa acirrar as disputas em áreas rurais, junto a populações ribeirinhas, indígenas, quilombolas, pescadoras, dentre outras, colocando em primeiro plano a expansão da cadeia produtiva da indústria em detrimento da preservação e da ampliação dos direitos.

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Destacamos outra particularidade: cidades latino-americanas que foram e ou permanecem comandadas por partidos e coalizões políticas de perfil popular e de centro-esquerda têm sido apresentadas ao mundo pelo seu dinamismo urbano de corte empreendedorista ou participacionista. Seus comandantes se afastam do direito à cidade (ou da cidade como um direito) e, em essência, encabeçam expressões desordenadas e a serviço do mercado de programas, projetos e políticas públicas dotadas de “receitas” e inovações urbanísticas sobre um tipo patrocinado de polis que não é para ser acessível, senão a quem estiver interessado em “comprar” e usufruir do que partes da cidade oferecem como marketing. Se de um lado as “receitas” do mercado privatista urbano apostam no caráter e na expansão da competitividade econômica de cidades inviabilizadas pelos seus problemas sociais e ambientais, por outro lado, as políticas que se originam desse processo de mercantilizarão da vida na urbe ainda não demonstraram o quão bem sucedidas são em termos de inclusão social, gestão democrática e, especialmente, segurança e partilha igualitária de bens públicos.

Da Cidade do México a São Paulo, de Buenos Aires a Bogotá o saldo das mudanças urbanas contemporâneas do capitalismo no continente coloca as cidades diante dos efeitos da reestruturação produtiva associada à desindustrialização, de um lado, e da diversificação das atividades terciárias, de outro. Esses efeitos, muito embora não sejam os únicos, geram novos outros, especialmente sobre a trabalhadora e o trabalhador urbano, vide a crescente flexibilização das relações trabalhistas. Essa realidade impõe riscos e gera a busca de alternativas de sobrevivência em ambientes marcados pelo empobrecimento da grande maioria e pela periferização. Isso diante da desestruturação da possibilidade de se morar em áreas centrais, favorecendo opções de edificação privada de grande impacto, em geral destinada ao comércio e a moradias de luxo.

No caso do Brasil, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva e agora no governo de Dilma Rousseff, a orientação geral da economia brasileira ainda não cessou de produzir desigualdades e violações, especialmente decorrentes dos projetos de desenvolvimento econômico cujos impactos são também sobre redes inteiras de cidades. Isso nos leva a concluir que o espaço urbano não é somente espelho de uma determinada forma de desenvolvimento econômico, ele é um de seus motores. É indutor direto do atual modelo de desenvolvimento econômico. E isso também tem ocorrido no continente de Norte a Sul.

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Protestos ocorridos no Brasil em 2013 publicizaram e politizaram a crise experimentada nas cidades do país, mostrando-se fortes catalisadores de insatisfações e reunindo uma diversa e, por vezes, contraditória gama de aspectos. As mobilizações conhecidas como “Jornadas de Junho” tiveram como estopim dois elementos estruturantes: a mobilidade urbana e a violência, demonstrando o caráter profundamente desigual de garantia e acesso ao direito à cidade. A (i)mobilidade urbana e sua incidência sobre a vida das populações mais pobres (que diariamente gastam nas grandes cidades, em média, quatro horas de deslocamento entre casa e trabalho) demonstram claramente os nexos entre a política de desenvolvimento econômico (com incentivos à indústria de automóveis e de petróleo em detrimento de políticas públicas coletivas de transporte) e a estruturação e gestão das cidades.

Um último elemento para pensarmos: as experiências de gestões administrativas situadas desde os partidos políticos de esquerda e ou centro esquerda resultaram em muito pouco em termos de enfrentar esse modelo de cidades criticado acima. Elas fizeram muitas ações importantes no campo dos direitos, mas, isso não se traduziu em ruptura com o modelo. E exatamente contra esse padrão de desenvolvimento subordinado e esse perfil de “gerencialistas do desenvolvimento” é que emergem as grandes manifestações urbanas, os grandes movimentos de resistência e de crítica radical aos caminhos do desenvolvimento, muitas delas fora dos domínios e dos padrões de partidos, movimentos e sindicatos. E aí? Não seria a vez das OSCs ampliarem suas capacidades de compreensão “desses novos” que emergem, exigindo dos “velhos” uma autocrítica? E se exigirem o mesmo das OSCs, o que vai ser dito? Quanto mais se demora mais se diz de qual lado as OSCs se encontram.

 

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