Os argentinos não são brancos

A autoimagem do país não corresponde ao que se vê nas ruas ou ao que dizem as pesquisas genéticas

Por Ivan Martins Do  Época

Muita gente riu na Argentina quando a então presidente Cristina Kirchner foi às Nações Unidas anunciar, em 2013, que a pobreza no país afetava somente 4,7% da população – mas ninguém riu quando o resultado do Censo de 2010 tornou-se público com a informação de que os indígenas e seus descendentes somavam apenas 955 mil pessoas, equivalentes a 2,58% da população do país.

Os dois números são incompatíveis com a realidade, mas estão separados por uma enorme diferença – os argentinos percebem que a pobreza em seu país não é menor que a da Alemanha, (onde os pobres somam 5% da população), mas não percebem que vivem num país de mestiços, onde a evidência das ruas sugere e as pesquisas de DNA confirmam uma população de origem indígena ao redor de 50%.

Ao contrário do Brasil, que por volta de 1930 começou a entender que não era um país branco, a Argentina continua se sentindo europeia. A autoimagem do país não incorporou os indígenas e seus descendentes, assim como os escravos africanos que no século XVII eram 30% dos moradores de Buenos Aires. Livros escolares ensinam que os argentinos vieram “dos barcos” (isto é, da Europa) e que os brancos constituem de 85% a 95% da população. Isso não é verdade, mas o país resiste a mudar o que pensa de si mesmo.

“Estamos apenas iniciando o processo”, afirma o jurista Javier Bujan, recém-empossado na chefia do Inadi, o Instituto Nacional contra a Discriminação, Xenofobia e Racismo, ligado ao Ministério da Justiça. “O primeiro passo é dar-se conta da situação, e isso já fizemos. Agora é preciso ampliar a discussão cultural. A invisibilidade social não se resolve com medidas de governo”.

Quando se pega um ônibus em Buenos Aires ou se caminha pelo centro da cidade, a mestiçagem indígena é comparável com a afro-brasileira nas ruas de São Paulo. Nos restaurantes elegantes, tal como em São Paulo ou no Rio, os clientes parecem suíços, mas os garçons e o caixa, não. Quanto mais afluente a área da cidade, mais branca ela é, exatamente como nas metrópoles brasileiras. Há brancos de olhos azuis nos bairros pobres de Buenos Aires, mas, tal como no Brasil, pobreza e tez escura costumam caminhar de mãos dadas.

Por que então a mestiçagem argentina é invisível aos próprios argentinos?

“No fundo, é uma questão de classe”, afirma o sociólogo Mario Margullis, professor da Universidade de Buenos Aires, autor de livros e estudos sobre temas raciais na Argentina. “Índios e mestiços, assim como os escravos negros, foram a mão de obra barata ou gratuita no período colonial. Desde a chegada dos espanhóis e durante toda a época colonial, o racismo foi a base social. As estruturas forjadas nessa época continuam presentes, estimuladas pelo racismo explícito dos pensadores do século XIX. Hoje elas se mantêm sem que se toque no assunto, invisibilizando o tema. Isso inclui também pensadores de esquerda. Em linhas gerais, a cor da pele coincide com a pobreza”.

A combinação de racismo e preconceito social se manifesta em expressões como cabecita negra, na qual se misturam cor de pele e origem social. O termo se difundiu na década de 1940, quando pessoas do campo, pobres, muitas de aspecto indígena, chegaram em massa a Buenos Aires, em busca de trabalho. Os racistas da época chamaram essa onda migratória de “aluvião zoológico”. Hoje, cabecita negra é outro sinônimo impreciso de pobre, sobretudo morador da periferia, onde se concentram imigrantes bolivianos e paraguaios, assim como argentinos mestiços e indígenas. Morenos, quase todos.

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Diego Maradona, o ex- jogador de futebol, gostava de dizer que era cabecita negra, e que por isso a elite argentina não o levava a sério.

Luis Pincen, professor de ciências, cacique e combatente pelos direitos indígenas, diz que o racismo na Argentina não é explícito, mas está em toda parte. Na televisão e na publicidade as pessoas bem-sucedidas são sempre brancas. Nos lugares caros, todos são brancos. No metrô, diz eles, as mulheres seguram as bolsas quando alguém de aspecto indígena se aproxima. “A gente percebe como nos olham”, afirma. “Não é um mundo feito para as pessoas morenas”.

As vítimas desse tipo de tratamento percebem os sinais, incorporam o preconceito e o reproduzem, inclusive dentro das famílias. Pincem, de 57 anos, tinha uma tia que costumava lhe dizer assim: “Pobre Luizinho, tão negrinho, tão feio e ainda por cima, calado”. O resultado do preconceito internalizado aparece de várias maneiras. Numa escola em que dá aulas, na periferia de Buenos Aires, Pincem pediu a adolescentes entre 13 e 19 anos que desenhassem a si mesmos. Todos se pintaram brancos, embora fossem morenos, de ascendência indígena. “Eles querem ser como Justin Bieber”, diz o professor. “Têm vergonha de ser o que são”.

Isso ajuda a explicar por que o Censo argentino de 2010, que se baseia em auto identificação, subestimou o número de indígenas e mestiços. “Ser integrante dos povos indígenas ou ser descendente deles não tem prestígio”, diz Margullis. “Desde a época colonial, ser branco era estar no topo da pirâmide. Isso perdurou e ainda se manifesta em numerosas esferas da vida”.

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Luis Pincen, lider indígena: os adolescentes são mestiços, mas se veem brancos

Além da resistência dos entrevistados a se identificar com um grupo estigmatizado, pode estar por trás da sub estatística o próprio encaminhamento do censo. Pincem diz que a pergunta sobre ascendência indígena foi feita em poucos domicílios e em áreas onde não se consegue captar a presença dos “povos originários” e seus descendentes. Isso, diz ele, distorceu e invalidou as estatísticas. “O censo foi mal feito”, afirma.

No livro Los afroargentinos de Buenos Aires, de 1989, o pesquisador americano Reid Andrews descreve a manipulação dos censos estatísticos para apresentar a população como branca. O órgão responsável pelo censo argentino, o Indec, não quis dar entrevistas para esta reportagem, embora procurado insistentemente.

Qual seria, então, o número correto de indígenas e mestiços na população argentina? Margullis acredita que, se forem incluídos os imigrantes dos países vizinhos, quase metade da população. Bujan, do Inadi, diz que 2,58% é “muito pouco”, mas “nem a tapas” se chega a 50%. Horácio Gonzalez, o intelectual de esquerda mais influente do país, me disse acreditar que 20% seria mais próximo da realidade. São palpites.

Enquanto o próximo censo não esclarece o mistério, o que existe é uma pesquisa genética feita pelo professor Daniel Corach, da Universidade de Buenos Aires, publicada em 2005 com grande destaque. Ela concluiu que 56% dos argentinos têm antepassados indígenas em seu DNA. Isso não muda um pixel da autoimagem do país, mas ajuda a estabelecer a simplicidade os fatos.

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