Os desafios da comunidade negra

Adney Araújo de Abreu, nascido em São Paulo, na década de 1970, filho de Antônio Abreu e Rosa Araújo de Abreu, casado há 27 anos com Cátia Abreu e pai de cinco filhos, é o atual o presidente do Conepir (Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Piracicaba).

Por Raquel Soares Do Jornal de Piracicaba

Presidente do Conepir fala sobre a atuação do conselho e de como ainda é preciso lutar contra o racismo. Foto: Amanda Vieira/JP.

Com formação em práticas em manipulação de alimentos industriais, panificação e confeitaria gourmet e técnico operador de som profissional, Adney começou a trabalhar aos 14 anos em uma grande rede de supermercados, onde ficou por cinco anos. Depois foi para o ramo alimentício industrial de uma grande empresa local, onde trabalhou por mais de 25 anos.

Atuou como dirigente sindical da classe da alimentação, onde teve a oportunidade de ser representante na Federação da Alimentação do Estado de São Paulo. Como diretor do Conselho das Entidades Sindicais de Piracicaba (Conespi), esteve à frente da pasta da saúde e também da pasta de gênero e raça onde proveu o primeiro seminário de combate ao racismo no mercado de trabalho voltado a sindicalistas junto a Semtre (Secretaria Municipal de Trabalho e Renda) e com o Instituto Sindical Interamericana pela Igualdade Racial (Inspir) onde também ocupou o cargo de diretor.

Coordenou o “Verão sem Aids – Valorizando a Vida”, projeto de controle social voltado a classe trabalhadora que levava informações importantes sobre doenças sexuais transmissíveis, sobre álcool, tabagismo e outras drogas. Além disso, ele foi condecorado com título de comendador Gram Cruz pela Sociedade Brasileira de Heráldica e Humanística em reconhecimento aos trabalhos realizados no movimento negro e sindical em 2016.

Nesta entrevista, ele explica o trabalho executado pelo Conepir e questões que envolvem racismo.

Quando o Conepir foi fundado?
O Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Piracicaba foi criado pela Lei Municipal 7.444/2012 e por meio do Decreto 14.955/2013. Participei de todo esse processo. No mês de junho de 2012 houve um caso de racismo em uma escola da cidade, envolvendo o professor Noedi Monteiro, que foi veiculado na imprensa local. Ao longo de seis meses tivemos reuniões todas as segundas-feiras, sendo as primeiras na sala de reuniões da presidência da Câmara de Vereadores, com apoio do então vereador José Manoel dos Santos, e outras reuniões na Sociedade Beneficente Clube 13 de Maio. Na época fui convidado pelo vice-presidente Djalma dos Santos que, junto com a professora Fátima Eugênio, foram a São Paulo buscar parceria com o Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, referência por ser o primeiro conselho do Brasil, onde fizemos uma grande reunião na sala do chefe do executivo com representantes da comunidade negra estadual e ativistas do movimento negro local.

Com quais objetivos o Conselho foi formado?
A comunidade negra piracicabana já clamava por mais de 30 anos por um órgão de representação civil oficial na cidade. Como instrumento de cidadania, o Conepir realiza palestras em universidades, escolas estaduais e municipais e tem como premissa informar a população do seu direito quanto a atos de racismo em nossa cidade. Para isso, criamos uma rede de proteção do 156 ‘Disque Racismo’ que deu ao cidadão comum a ferramenta de fazer denúncias, com o prazo de sete dias para ser orientado sobre como proceder. Temos à disposição da população o nosso departamento jurídico com apoio da OAB Piracicaba. Com a visita da professora Vânia Soares, que na época representava o Conselho Estadual, se fez a seguinte pergunta: “porque a cidade não tem um conselho da igualdade racial, se naquela ocasião havia vários representantes da comunidade negra reunidos buscando o mesmo objetivo?”.

Quais serviços o Conepir oferece à comunidade negra?
O Conepir tem como missão representar a comunidade negra na cidade, através de projetos educativos nas escolas estaduais e municipais, faculdades e empresas. Disponibilizamos um departamento jurídico gratuito para os casos de racismo denunciado via 156. Lançamos um livro com mais de 200 personalidades negras para melhorarmos a autoestima dos estudantes negros e para o conhecimento dos não-negros que a nossa história não é apenas de dor e escravidão. Nós ajudamos a construir este país com cultura, arquitetura e medicina. Tivemos, e temos, protagonismo em nossa historia, com a visão de que a educação é o principal caminho quando sabemos que ninguém nasce racista.

Qual é a importância desse serviço para Piracicaba?
Uma cidade que cresce com modernidade também tem que crescer com igualdade. O Conepir é uma ferramenta de cidadania com a representação direta da sociedade civil negra organizada com o Executivo, Legislativo e Judiciário. Entre as atribuições do Conselho, estão: formular diretrizes e promover atividades que visem à defesa dos direitos da comunidade negra, à eliminação das discriminações que a atingem, bem como à sua plena inserção na vida socioeconômica e político-cultural; assessorar o Poder Executivo, emitindo pareceres e acompanhando a elaboração e execução de programas do Governo Municipal em questões relativas à comunidade negra, com o objetivo de defender seus direitos e interesses; desenvolver estudos, debates e pesquisas relativas à problemática da comunidade negra; sugerir ao prefeito e à Câmara Municipal, a elaboração de projetos de lei que visem assegurar e ampliar os direitos da comunidade negra e eliminar da legislação disposições discriminatórias; fiscalizar e tomar providências para o cumprimento da legislação relativa aos direitos da comunidade negra; desenvolver projetos próprios que promovam a participação da comunidade negra em atividades de todos os níveis; estudar os problemas, receber sugestões da sociedade e opinar sobre denúncias que lhe sejam encaminhadas; apoiar realizações concernentes à comunidade negra e promover entendimentos e intercâmbio com organizações estaduais, nacionais e afins.

Quais são os maiores desafios do Conepir e como você lida com eles?
Os desafios são muitos desde a falta do negro nos altos escalões de empresas e do serviço público quanto nos casos de racismo no comércio e indústria locais. Temos que ter muita calma para tratar de um tema tão delicado, pois se agirmos no impulso acabamos cometendo erros na tentativa de corrigí-los. Como presidente de um órgão tão importante na cidade, tenho que ter equilíbrio para junto da minha diretoria buscar as melhores formas de combater os atos racistas sem que isso promova um ‘apartheid’, mas sim a Educação. Acreditamos que só a Educação pode mudar este quadro lastimável em que vivemos.

Quais as maiores conquistas do Conselho?
Uma das grandes conquistas do Conepir foi a mudança nas regras da lei de cotas nos concursos públicos municipais da cidade, que tinha uma interpretação que não favorecia os negros que optaram pelas cotas. Outra grande conquista foi o Disque Racismo 156, sendo este um canal direto com a vítima que pode quantificar oficialmente os casos de racismo. O direito as religiões de matriz africana de terem oficialmente no calendário da cidade o dia dos orixás, a restruturação do centro de documentação de história e política negra de Piracicaba, a oficialização da execução do hino à negritude nos eventos negros cívicos da cidade, um Termo de Conduta (TAC) firmado entre Conepir e OAB Piracicaba com a delegacia de ensino estadual na atuação de casos de racismo nas instituições de ensino com treinamento aos professores ministrado pelo Conepir para como agir rapidamente nos casos de racismo, sempre enfatizando que a educação e o melhor caminho foram algumas das nossas conquistas.

Você já sofreu algum tipo de preconceito racial?
Fui vítima de racismo em um estabelecimento comercial da cidade juntos com os meus filhos. Na época não tinha conselho da igualdade racial na cidade e fiquei perdido sem saber onde procurar meus direitos. Uma situação que não desejo para ninguém, recorri os meus direitos para que nem um cidadão negro passasse pelo que passei. Foi então que me aprofundei em conhecer as leis e onde recorrer nestes casos, isso me deu mais forças para ajudar a montar o Conepir na cidade. O dono da dor sabe quanto dói não podermos entrar em um estabelecimento ou como é ficar invisível e ouvir a minha filha perguntar: “papai porque não fomos atendidos?” Isso não é vitimismo, isso é racismo. Jamais abaixarei minha cabeça para isso.

O racismo ainda é um problema que afeta o mundo inteiro. Em sua opinião, Piracicaba é uma cidade racista?
Piracicaba que eu adoro tanto. Não posso atribuir o racismo à cidade e sim as pessoas. Infelizmente ainda vemos o racismo velado na cidade, que teve o terceiro maior número de escravos do Estado de São Paulo. Por isso, o Conepir trabalha forte com a afirmação da identidade e ocupação de lugares onde o negro era proibido de frequentar.

Você é a favor das cotas? Você acredita que a política de cotas brasileira está no caminho certo?
Sim, sou sim a favor das cotas. Em 10 anos, conseguimos colocar mais negros e negras nas faculdades do que em 100 anos. Fato este relatado por uma grande revista de destaque nacional que também enfatizou o desempenho dos alunos cotistas acima da média na sua totalidade. E não dá para falar de cotas sem mencionar a história após a Lei Áurea. Leis que impediam o negro de estudar e de trabalhar e ter direito a terras, por exemplo. Há quem diga que recebemos esmolas. Sinto vergonha de um discurso como este. Impossível que essas pessoas não se lembrem das leis que muito nos prejudicou como, por exemplo, a que nos proibiu de frequentar escolas, por sermos considerados ‘doentes de moléstias contagiosas’. Os poderosos do Brasil sabiam que o acesso ao saber sempre foi uma alavanca de ascensão social, econômica e política de um povo. Com este decreto, os racistas do Brasil encurralaram a população negra nos porões da sociedade. Juridicamente, este decreto agiu até 1889, com a roclamação da República. As cotas foram criadas com o intuito de equiparar as desigualdades.

Qual é a sua opinião sobre legislação brasileira no que tange ao racismo e à discriminação?
Em termos de conquistas, o Brasil está engatinhando com relação a muitos países. A lei Áurea foi apenas uma obrigação que princesa regente teve que cumprir, pois já estavam avançadas as tratativas com relação à libertação, tamanha era a pressão internacional. Por outro lado, uma lei de apenas um parágrafo deixou o negro marginalizado, pois no fatídico dia 14 de maio, passamos a ser marginais sem teto, sem renda, sem documentos e sem nada. Apenas uma massa de pessoas sem destino neste solo brasileiro. A legislação precisa ser célere tanto para não perdermos direitos adquiridos quanto para que possamos avançar em projetos sociais que tentam diminuir a desigualdade racial em nosso país.

O Brasil é famoso por sua diversidade, inclusive racial. Essa diversidade tem vez na mídia? Como você observa a presença de negros na televisão, por exemplo?
A mídia tem um poder incrível de esconder o negro no Brasil. Em uma novela de 1980 pintou-se um ator não-negro para fazer um papel de um preto velho. Será que não tinha nem um negro para fazer este papel? Ainda nos anos seguintes uma grande atriz negra que se destacava na época foi protagonista de um beijo entre uma negra e um artista não-negro. Isso na época foi um escândalo, a emissora sofreu com algumas empresas que prometeram retirar seus comerciais. Os papéis que os negros interpretam ainda são de servidão. A família negra na novela é sempre uma família que só tem a presença da mãe, ou de uma mulher abandonada ou um menino negro marginal. Penso que, se a mídia mudar a sua postura, ela ajuda a diminuir o racismo. Todavia, a quem isso interessa?

A possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de um branco, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O que pensa sobre isso?
Os mortos no Brasil tem cor e são apenas números que ficam escondidos pelas autoridades que sempre justificam que foi uma ‘ação controlada e que o ato de resistência levou a morte’. É isso que ouvimos o tempo todo. A Secretaria da Justiça e da Cidadania, por meio da Coordenadoria de Políticas aos Povos Negros e Indígenas tem feito um bom trabalho, pelo menos em São Paulo, para punir e reverter este quadro de mortes da nossa população. Eu vou mais além e sem medo de errar: o que está acontecendo é uma limpeza étnica.

A criação do Dia da Consciência Negra (20 de novembro) é uma forma de valorizar um povo que contribuiu para o desenvolvimento do país. O que voce acha desta data?
Na verdade, o dia 20 de novembro é uma data de muita reflexão, pois há exatos 323 anos morria um líder, um homem que lutou contra a tirania e os grilões europeus e do clero que abençoava os atos infame em nome de muito ouro. A minha reflexão é a seguinte: Se em Palmares, naquela época, chegou a ter uma população de até 30 mil pessoas, organizadas e em preservação de seus direitos em prol da liberdade, qual a dificuldade de termos uma resistência efetiva aos crescentes atos contra a vida dos negros e a banalização de seus direitos hoje em dia? Esta é uma pergunta que me corrói pois não acho uma resposta efetiva.

Como você avalia as conquistas do movimento negro nos últimos vinte anos no Brasil?
São conquistas que não podem ser esquecidas como a Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) que já teve status de Ministério, o estatuto da Igualdade Racial, lei 12.288/10 que vejo como emenda da lei Áurea que, depois de anos, passa a reconhecer o negro como parte da sociedade e daqueles que tem direitos humanos básicos como direito à terra, moradia, saúde, educação, lazer, esporte e acesso às mídias. Tudo isso o movimento negro nacional luta para tirar do papel.

Que soluções você aponta para a invisibilidade, a distorção, o espelho infiel que é a mídia para esta população?
A invisibilidade do negro na mídia vem na contra mão. Prova disso foi o grande sucesso do filme Pantera Negra, recorde de bilheteria, onde milhares de jovens negros encontraram sua identidade ao verem um super-herói negro, que vem de um país rico, com inovações tecnológicas. Isso aumentou a auto estima do negro no Brasil e no mundo. São estas transformações positivas que esperamos.

Como a comunicação pode ajudar a superar a história racista do Brasil?
Entre as principais formas estão a divulgação de materiais educativos que mostre a participação do negro na sociedade a sua contribuição histórica neste país; dando acesso para profissionais negros neste seguimento; que divulguem o afro empreendedorismo que vem crescendo no país. Sabemos da grande influência que tem os músicos negros e atletas negros mais que isso não seja só notícia de periferia e que isso possa ser veiculadas em todos os canais

Praticamente sete em cada 10 (67%) profissionais negros já sentiu que perdeu uma vaga de emprego por conta de sua cor. É o que aponta uma pesquisa divulgada em 2017 pela consultoria Etnus. O que, em sua opinião, é preciso ser feito para melhorar as oportunidades para as pessoas negras de Piracicaba?
É preciso que os empresários sejam educados e entendam que a equidade trás benefícios. O trabalho é de formiga, inclusive passando pelo perfil dos RHs, pois, muitas vezes o racista não é o empresário e sim o recrutador.

O que espera do futuro quanto ao combate ao racismo e preconceito racial?
Espero que meus netos vivam em um mundo mais justo, e, isso não é utopia. É um desejo simples, pois cansamos de ouvir que todos somos iguais e que a única raça é a raça humana. Espero que meus netos não sejam parados pelas polícia apenas porque são negros e que a professora não venha falar para a minha neta que o cabelo dela é ‘ruim’. Espero que as mulheres negras não sofram mais no parto porque o médico diz que ‘a mulher negra aguenta mais a dor’. O grande Dr. King disse que tinha um sonho e o sonho dele é o mesmo que o meu. “Que o homem não seja julgado pela cor de sua pele e sim por seu caráter”.

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