Em julho passado, o presidente da Republica, Fernando Henrique Cardoso, reuniu-se com 14 governadores de estados da federação para o anúncio do Plano de Apoio aos Estados de Menor Desenvolvimento Humano, o IDH-14. Trata-se de um plano com recursos da ordem de R$ 11,5 bilhões, alçados de vários projetos governamentais, como o fundo de combate a pobreza, a serem aplicados em 14 estados cujo índice de desenvolvimento humano é considerado baixo.
Por Sueli Carneiro
Considerando os recursos previstos – mesmo que parte deles virtual – e a dimensão sócio-demográfica que poderá vir a alcançar, IDH-14 pode tornar-se o principal programa de políticas públicas de cunho social em áreas como juventude, trabalho infantil, programa de renda mínima, etc., e com indicação de um órgão executor, no caso, a Secretaria de Estado de Assistência Social, na pessoa da Sra. Wanda Engel Aduan.
Entretanto, chama atenção no IDH-14 a ausência de políticas específicas para setores da sociedade brasileira sabidamente em condições de vulnerabilidade.
Na semana que antecedeu o lançamento do IDH-14, a desigualdade racial no Brasil foram sobejamente demonstrada em estudo divulgado pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), do Rio de Janeiro. O economista Marcelo Paixão coordenou, nesta instituição, a elaboração O Índice de Desenvolvimento Humano com recorte étnico com o mesmo rigor utilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) na elaboração do IDH de 174 países. Neste estudo podemos verificar que os afro-descendentes ocupam a 108ª posição no ranking proposto pelo PNUD enquanto os brancos ocupam a 49ª posição. O Brasil, obedecendo o mesmo ranking, ocupava a 74ª posição.
Esses dados falam por si. No entanto, importa sublinhar que a impossibilidade de elaborar políticas públicas sem levar em conta as desigualdades raciais existentes no país e, ao mesmo tempo, apontar as deficiências existentes nas formulações que não consideram seriamente esta dimensão.
De forma constrangedora e preocupante, o anúncio do IDH-14 é feito sem nenhum item dedicado a população negra, apesar do plano estar previsto para ser aplicado nos estados em que negros constituem, significativa parcela da população. Segundo a PNAD de 1996, esses são os números de pretos e pardos nos estados contemplados no IDH-14: Acre (71,5%), Alagoas (52,5%), Bahia (71,4%), Ceará (69,7%), Maranhão (80,4%), Pará (74,6%), Paraíba (55,7%), Pernambuco (65,1%), Piauí (80,3%), Rio Grande do Norte (57,1%), Rondônia (57,5%), Sergipe (82,1%) e Tocantins (71,7%), perfazendo um total de 35.195.739 pessoas.
Ao que tudo indica, o governo ainda aposta nas chamadas políticas universalistas para o enfrentamento de problemas que são notadamente de maior urgência entre a população negra. Neste século, o Estado Brasileiro tem se esmerado em dar à educação o caráter universal que ela, sem dúvida, tem. No entanto, não é possível dizer que a população negra tenha se beneficiado exemplarmente deste princípio. Em outras palavras, os indicadores de educação demonstram os limites dos argumentos estritamente favoráveis às políticas universalistas. Dados oficiais de 1997 assinalam que a taxa de analfabetismo da população negra maior de 15 anos era de 20,8% e da população branca 8,4%. Para os negros entre 7 e 22 anos que freqüentavam escola, o índice de escolaridade era de 77,7%. Enquanto a população branca na mesma faixa de idade era igual a 84,7%. Todos sabemos o quanto, no mundo moderno, a educação constitui fator essencial a formação para a cidadania e qualificação profissional. No entanto, com esses índices é muito pouco provável que os negros/afro-descendentes tenham condições de competir em igualdade de condições com a população branca.
Enfim, corre-se o risco de mais uma vez termos um plano, dessa vez com recursos e órgão executor, fadado ao fracasso em função de interpretações equivocadas, resultando na permanência – quiçá o aumento – de milhões de brasileiros à margem do processo de desenvolvimento. Para os formuladores dos planos governamentais e para a sociedade brasileira fica aqui registrada a relação passível de ser construída entre o péssimo Índice de Desenvolvimento Humano brasileiro e a falta de atenção às necessidades e interesses da população negra. Se os formuladores de políticas públicas e lideranças políticas do país assumissem para si a responsabilidade de atender adequadamente a população negra brasileira, com certeza, o IDH brasileiro seria bem mais elevado. Finalmente, estaríamos livres do constrangimento de ter o IDH da população negra brasileira cinco posições abaixo da África do Sul, país que até recentemente viveu sob o regime de apartheid.