Os Pretos do Rosário de São Paulo é o título de um livro de autoria de Raul Joviano Amaral, advogado, intelectual e militante negro, com passagem pela Frente Negra Brasileira (1931-1937), Associação José do Patrocínio, Centro Cultural do Negro, Associação cultural do Negro e pelos jornais A Voz da Raça, Clarim d´Alvorada, entre outros. Amaral fez parte de uma das agremiações mais antigas de São Paulo, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, entidade ativa na cidade desde a primeira metade do século XVIII.
As irmandades eram organizações tipicamente urbanas, atuantes principalmente no período colonial, em que senhores de engenhos e os representantes oficiais da Igreja Católica – padres e vigários – centralizavam as relações entre política, economia e religião. Essas agremiações religiosas se organizavam em torno do compromisso de devoção a um santo.
No caso da devoção a Nossa Senhora do Rosário, essa já era praticada na África central, levada pela coroa portuguesa ao Congo em meados do século XV. Os homens e mulheres negros, mesmo escravizados e após experimentarem a travessia do Atlântico, trouxeram consigo parte de suas crenças e culturas. Assim, a devoção ao Rosário se transformou em um dos maiores legados da experiência da diáspora africana. O culto à santa tornou-se fonte de aglutinação e de resistência dos escravizados no Brasil.
As irmandades eram um dos meios pelos quais os negros criavam espaços de autonomia e resistência, fosse por meio do disfarce de seus cultos ancestrais, ou pela ajuda mútua oferecida pelas agremiações para a compra de cartas de alforria, realização de ritos fúnebres, ou nos momentos de lazer oferecidos pelos inesquecíveis festejos, as coroações dos reis e rainhas do Congo.
Raul Joviano Amaral, um dos integrantes da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, nasceu em Campinas, em 1914, mas passou grande parte de sua vida na capital paulista. Formado em Direito pela Universidade do Brasil (RJ), foi um intelectual negro com grande circulação entre o meio negro organizado e a intelectualidade paulista da época, mantendo intensa relação com os sociólogos Florestan Fernandes (1920-1995) e Roger Bastide (1898-1974).
Enquanto intelectual e membro da irmandade do Rosário, Amaral buscou reconstituir a história da instituição. O autor embasava suas análises nas atas da irmandade e documentos da imprensa. Raul Joviano Amaral escolheu publicar a primeira edição do livro em 1954. A data marcava as celebrações do IV centenário da cidade de São Paulo, momento de criação do mito do bandeirantismo paulista e da cidade do progresso. Esse evento serviu para diferentes setores sociais ativarem ou criarem uma memória coletiva positiva, capaz de justificar uma espécie de destino manifesto, numa trajetória linear e ininterrupta da vila de São Paulo de Piratininga à metrópole que mais crescia no país e que já era à época considerada “locomotiva econômica da nação”.
Em seu livro, Raul Amaral apresenta diversas evidências sobre a importância da história da igreja para a história da cidade. É por meio da reconstrução histórica dos templos que abrigaram a irmandade, ao longo de mais de três séculos de permanência neste território, que ele construiu sua retórica sobre a importância dos negros para a história de São Paulo. Um dos pontos mais importantes na narrativa de Amaral é o transplante da Igreja do Rosário, do antigo Largo do Rosário- hoje Praça Antônio Prado – para a sua atual sede, localizada na Praça do Paissandu.
Com o processo de urbanização de São Paulo, a Igreja do Rosário foi retirada do antigo Largo do Rosário. A justificativa do poder municipal foi a da incompatibilidade entre a permanência do edifício e os projetos de embelezamento da cidade. A Irmandade do Rosário tinha no largo, além do terreno que abrigava o seu templo, outros imóveis que serviam de moradia para os irmãos e irmãs negros, e como fonte de renda por meio da locação desses imóveis. Por volta do final do século XIX abrigou algumas sapatarias, e até uma das mais refinadas confeitarias da cidade, a Brasserie Paulista.
O apogeu do café e o boom econômico que a cidade vivia na época, fez com que a municipalidade realizasse grandes obras na cidade, que alterariam seu traçado urbano e os estilos dos seus imóveis. Esse período é chamado pela historiografia de Belle Époque paulistana, em que os estadistas e os empresários buscavam construir no centro da cidade uma pequena Paris de Haussmann, em que o progresso e a exuberância da arquitetura eclética, saltassem aos olhos.
A narrativa usada sobre o processo de urbanização de São Paulo exclui e apaga de sua história a participação de homens e mulheres negras que viviam ali, desde que a cidade era considerada um pobre vilarejo. A história contada pelos memorialistas de São Paulo escamoteia a história do antigo Largo do Rosário, e da igreja homônima.
Ao reconstruir essa história, Amaral inverte as peças do jogo, colocando os negros e as negras como protagonistas, e não mais os barões do café. Sinaliza para o fato de que a mesma história da construção da cidade monumental, símbolo do progresso, também abriga a história de expropriação e de esquecimento dos homens e mulheres negros que ajudaram a construí-la. A praça que hoje leva o nome do primeiro prefeito da cidade, Antônio Prado, recebia em seus primórdios o nome dos pretos do Rosário. A irmandade foi expropriada materialmente de suas posses, mas também sofreu danos de ordem simbólica, pelas vias do apagamento que a mudança do nome do largo de Rosário para Praça Antônio Prado representa.
A desapropriação do templo começou em meados de 1900, e somente foi finalizada em 1904. Como indenização, a irmandade recebeu um terreno no Largo do Paissandu para reconstrução da igreja nova, e uma quantia no valor de 250 mil contos de réis. A inauguração do novo templo ocorreu em 1906. Apesar da irmandade ter sofrido outras ameaças de desapropriação ao longo do século XX, a igreja está, até hoje, no largo do Paissandu, onde divide o espaço da praça com o monumento à Mãe Preta.
O livro Os Pretos do Rosário de São Paulo nos permite não só olhar para história dos negros na cidade de São Paulo, mas nos fornece outras versões sobre a hegemônica narrativa sobre a “cidade do progresso”. Amaral coloca os negros como protagonistas de uma narrativa normalmente guiada por protagonistas brancos, que chefiam a construção de uma cidade monumental. Essa narrativa abriga em si traços da destruição e de tentativas de apagamento da presença negra em São Paulo, mas que ganham luz a partir da narrativa que estabelece Raul Joviano Amaral.
Assista ao vídeo da historiadora Heloisa Rosa C. Lima no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar por quais meios houve a inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar quais foram os seus resultados e como são importantes para o entendimento do nosso passado). EF09HI04 (9° ano – Discutir a importância da população negra para a formação econômica, política e social do país).
Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais). EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual. promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).
Heloisa Rosa C. Lima
Telefone: (19) 983164022
Historiadora formada pela PUC Campinas, Mestranda em História na Unicamp E-mail: [email protected]; Instagram @heloisa_rosaflor
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