Os protestos contra a Copa nasceram antes do Brasil ser anunciado como sede

Entendo que há emissoras que são parceiras da Fifa nas transmissões e que, por conta disso, evitam ir muito à fundo na questão dos protestos contra as grandes obras relacionadas à Copa das Confederações. Fariam um favor supremo se ajudassem aos telespectadores entenderem (e talvez até alguns representantes políticos que só abrem a boca para falar abobrinha) que não é de agora que esse pessoal está puto da vida. E apenas um marreco com problemas de aprendizagem não estava sabendo que quando a bola começasse a rolar nos gramados essa bomba explodiria. As manifestações pela revogação no aumento da tarifa, e a consequente violência policial contra elas, trouxe um mundaréu de pessoas e suas pautas às ruas. Entre elas, as pautas dos efeitos colaterais do desenvolvimento.

por Leonardo Sakamoto

O Brasil se tornou um imenso canteiro de obras. Para obras visando à Copa do Mundo, às Olimpíadas, à produção de energia elétrica, à construção de casas e escritórios, à prospecção de petróleo e gás.

O problema é que havia gente morando nos locais escolhidos para essas mesmas obras.

Então, para garantir que ninguém interrompesse este país (um gigante que caminha impávido para cumprir seu destino glorioso), remove-se, expulsa-se, retira-se. Degreda-se. Para onde? Pouco importa, contanto que não atrapalhe a marcha.

Certo dia, um fazendeiro português com terras no Mato Grosso disse a Pedro Casaldáliga, símbolo da luta pelos direitos do campo no Brasil, para justificar o injustificável: “Dom Pedro, o senhor é europeu, o senhor sabe. As calçadas de Roma foram feitas por escravos. O progresso tem seu preço”.

O uso da porrada como instrumento de cumprimento de ordem legal varia caso a caso. Mas a violência está presente em todos eles, com bala de borracha ou não. Afinal de contas, existe maior atentado contra a dignidade humana que a remoção forçada de pessoas, no campo ou na cidade, que não têm para onde ir sob a justificativa de um bem maior?

Adoro quando o governo diz “estávamos apenas cumprindo ordens”, mesmo quando todos sabemos que não havia condições para que a execução dessas ordens fosse feita de forma a respeitar a dignidade da população.

Há sempre a possibilidade de dizer “não”, não vou enfrentar a massa com violência. A Constituição garante isso ao poder público, até porque um resultado pacífico é mais importante que cumprir uma ordem superiora. Em Nuremberg, o “cumprir ordens” foi amplamente usado. Lá, não colou. Aqui, cai como uma luva.

Assim fizeram alguns líderes policiais ao se negarem avançar sobre manifestantes desarmados quando a maior parte da mídia estava contra os protestos – ou seja, antes de a PM transformar a rua da Consolação, em São Paulo, em estande de tiro de parque de diversões na quinta, dia 13.

Falar sobre a política higienista das grandes metrópoles e de seus governantes é quase chover no molhado. Afinal de contas, as empresas de ônibus, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão lá, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras (o plano diretor da cidade de São Paulo que o diga).

Além do mais, a sanha punitiva do Estado-locomotiva (sic) da nação é grosseira, tendo – na maioria das vezes – como alvo a massa de sem-teto, sem-terra, dependentes químicos, pobres, enfim, os rotos que ousam ficar no meio do caminho. São Paulo é a prova viva do que ocorre com uma sociedade quando ela não digere e entende o seu passado. Ainda usamos métodos dos verde-oliva da ditadura, pois não refletimos como povo sobre eles após o fim dela, simplesmente anistiamos. Mudam-se os rótulos, ficam as garrafas. Qual a diferença de descer porrada em indígenas no Amazonas e Roraima para construir uma estrada durante a Gloriosa e lançar balas de borracha em uma comunidade pobre em São José dos Campos para erguer um empreendimento ou encher um grupo de jovens e jornalistas com gás lacrimogênio porque não estavam em casa vendo novela?

Como já disse, dá vergonha alheia ver setores do governo federal ultrajados com a tragédia humana que está ocorrendo em São José dos Campos, mas mantendo silêncio quanto a ignomínia policial dos últimos dias. O discurso de Dilma não trouxe uma merreca de palavra condenando o abuso de força policial dos últimos dias. A arruaça era civil, não militar. Ahã, Cláudia, senta lá.

Ao mesmo que pede paz, a União está jogando o trator em cima de ribeirinhos, camponeses e indígenas para a construção de usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte, no Pará. Em nome do progresso – o mesmo do fazendeiro interlocutor de Casaldáliga citado acima. Violência estatal não é só dar porrada com cassetete. Ela pode vir através de financiamento público abundante também. É mais limpo e não cheira a gás.

O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infra-estrutura e erguer moradias, girando a economia. Só que “esqueceu” de uma coisa: com o mercado imobiliário aquecido, a busca por áreas urbanas para a incorporação levaria à expulsão de comunidades pobres que disputam a posse de terrenos. Se a Justiça considerasse sempre a função social da propriedade para tomar suas decisões, como está previsto na Constituição Federal, a história seria diferente e essas comunidades teriam direitos preservados. Mas se o Coelhinho existisse, talvez eu tivesse ganho o ovo de chocolate que tanto queria na última Páscoa. Ou se Papai Noel fosse de carne e osso, obras para a Copa não desalojariam ninguém de forma questionável.

O Planalto não se planejou para esses impactos da transformação do país em canteiro de obras. Para falar a verdade, não planejou muita coisa nessa área.

A questão trabalhista na construção civil está uma calamidade – protestos na usina hidrelétrica de Jirau, que levaram a um quebra-quebra, são a cereja do bolo. Ao longo dos anos, pipocaram manifestações de trabalhadores nas obras de estádios para a Copa do Mundo, como em Recife e no Rio de Janeiro, e casos de trabalho escravo (artigo 149 do Código Penal) em obras de moradia. Em empreendimentos pertencentes ao “Minha Casa, Minha Vida” o Ministério do Trabalho e Emprego já libertou muita gente.

E querem saber o melhor de tudo isso? O grosso da população brasileira não se importou. Tomou Johnny Walker com Activia e nem olhou para o lado. Assistiu ao Estado tocar o diabo em pequenas comunidades para tornar o crescimento viável. Acha um absurdo exageros (contra o patrimônio, é claro), como todo cordial brasileiro, mas também não se importa em saber como o seu apartamento, energia elétrica, estrada ou estádio foram feitos. Quer ser abençoado e permanecer na ignorância.

Lembro-me do ensaio “O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento”, de Marshall Berman. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas o diabo não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês. A mentalidade que fomenta Fausto (“destruir para criar”) é a realidade em constante movimento (Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo).

No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia, um casal de idosos. Eram um empecilho para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando o ideia que o mal (o casal idoso) precisa ser extirpado da sociedade para que a sociedade cresça. Caem os limites morais. O desenvolvimento da modernidade não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo.

É ótimo que, após o Movimento Passe Livre ter nos organizado para alcançar a revogação no aumento das tarifas, que outras pautas venham à público. Como já disse, milhares de jovens foram à ruas descontentes, insatisfeitos, indignados. Tem algo pulsando muito forte dentro de cada um. A percepção obtida com as vitórias alcançadas nas ruas é que é possível, sim, ao contrário daquilo que seus pais lhes disseram. Muitos não têm formação histórica ou política alguma e, como já escrevi antes, este é o momento de discutir isso com eles.

Falar de saúde, educação e corrupção é fácil. Difícil mesmo é discutir publicamente se nós, os mais ricos, estamos dispostos a ceder para que os mais pobres deixem de ser tão pobres. Afinal, as lembranças da desocupação forçada do Pinheirinho ou dos incêndios nas favelas de São Paulo irão durar na cabeça da classe média até que empreendimentos bonitos fiquem prontos no lugar. Males a serem extirpados em nome do progresso e do futuro.

Mas, por mais fraca que seja, essa memória não se apaga. Fica lá, latente. E, quando há uma oportunidade, como uma Copa das Confederações, vem à tona, trazendo não apenas a indignação de quem teve sua cidadania excluída para a construção das estruturas das quais não se vêm refletidas como usuárias. Isso sem contar os séculos de repressão de quem foi sistematicamente excluído de tudo. Não era grito de raiva o que se ouviu de pessoas em vários cantos do país que choraram a repórteres após contar o que perderam pela Copa.

Era algo muito mais assustador.

 

 

Fonte: Blog do Sakamoto

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