‘Ouvi um agente de modelos dizer que eu era bonita, mas tinha um problema: era negra’

Saí de lá aos prantos e tentando entender aquela lógica que limitava as oportunidades de trabalho para mulheres negras no mercado de moda e beleza a um número muito baixo e desequilibrado’

Luana Génot – Foto: Eduardo Biermann

no AzMina

“Sou mulher, negra, cresci na Zona Norte do Rio de Janeiro, em uma família de classe média baixa do Rio de Janeiro, e me formei em Publicidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Desde o início do mestrado em Relações Étnico-raciais, aprendi e passei a incluir em meus relatos o meu lugar de fala logo no início das minhas apresentações e textos. Acredito que esta é uma forma de transparecer minhas escolhas desde as palavras, passando pelos autores e vieses interpretativos de tudo aquilo que busco investigar no mundo em que estou inserida.

Ao iniciar minha graduação em Comunicação Social em 2010, descobri que o campo de possibilidades de estudos era muito mais vasto do que eu havia imaginado. Não somente dentro da própria Publicidade, mas também em áreas correlatas, como jornalismo e cinema, as outras opções do curso. A minha escolha por estudar o mundo da Publicidade, no entanto, já era fruto de vivências anteriores que vivi como modelo fotográfico e de passarela. A que mais me inquietou e, por consequência, me impulsionou, foi a que tive em 2007 numa agência de modelos em Paris, minha primeira viagem internacional.

Fui a convite de uma marca francesa em parceria com uma revista franco-brasileira e uma escola de modelos de uma favela carioca.  Nesta época, era comum que as agências abrissem suas portas em algum dia da semana para receber novas possíveis ingressantes. E lá fui eu tentar minha sorte.

 

Cheguei bem cedo à agência e, ao meu redor, estavam centenas de meninas de várias nacionalidades, em sua maioria brancas, magras, esguias. Pouco a pouco, cada uma delas, mesmo as que chegaram depois de mim, foi entrando para a entrevista, que consistia em um desfile e uma avaliação pela banca de agentes. A sala, antes cheia, foi ficando vazia e eu ficando para trás.

Quando finalmente pude perguntar ao agente que levava as meninas para a sala de entrevistas o porquê deles não me chamarem, ele me pediu para aguardar. Até que, então, quando já não havia mais nenhuma outra menina na sala, um dos agentes sentou-se ao meu lado e começou a conversar comigo. Ele me disse:

“Você é muito bonita, mas tem um problema: é negra!”. 

Em seguida, me explicou que, apesar de ter um perfil físico adequado ao exigido — era tão magra (ou quase) quanto as outras modelos que vi —,  a cor da minha pele era o maior impeditivo para que eu pudesse ser agenciada e ter sucesso como modelo.

Para justificar sua afirmação, ele pegou uma espessa revista de moda ao seu alcance. Folheou comigo do início ao fim e me pediu que contasse o número de mulheres negras que apareciam nas páginas. Entre as inúmeras matérias e anúncios publicitários de moda e beleza, só uma ou duas que mostravam modelos não caucasianas. E foi esta proporção que ele usou para também justificar o porquê, num apanhado de umas 300 modelos, de a agência somente ter em seu quadro de trabalho duas negras.

Segundo ele, possivelmente, eu teria chances somente se percorresse outras agências em busca de um encaixe em alguma que estivesse sem alguma das modelos negras, parte de uma “cota” máxima, extremamente limitada, e, aparentemente, uma prática bem conhecida neste mercado.

Saí de lá aos prantos e tentando entender aquela lógica que limitava as oportunidades de trabalho para mulheres negras no mercado de moda e beleza a um número muito baixo e desequilibrado.

Depois de muita persistência, consegui ser representada por agências no exterior e no Brasil, já que a tal proporção baixa numericamente de modelos negras em relação às brancas do mercado europeu também era reproduzida aqui. A partir daí uma série de reflexões fortaleceu ainda mais meu interesse por pesquisar a questão racial no Brasil e no mundo.

Revisitei meus cadernos e livros de infância e me deparei com uma ilustração onde me desenhei loira dos olhos azuis, tal como uma paquita, personagem dos anos 90 do programa de TV que assistia. 

Também descobri que minha família teve que se mudar da favela da Praia do Pinto, após um incêndio tido por muitos noticiários como criminoso e proposital para eliminar pretos e pobres de uma área da cidade próxima ao bairro do atual Leblon, Zona Sul do Rio,  nos anos 1960.

Toda esta conjuntura me fez ver que o status de publicitária representaria o poder de mudar estruturas. Desde a decisão sobre o perfil das pessoas escolhidas para ilustrar esta ou aquela campanha à  possibilidade de abrir oportunidades e espaços para pessoas negras como eu. E comecei a pesquisar referências  para combater as práticas raciais segregacionistas no mercado brasileiro.

Em 2012, ingressei no programa “Ciências Sem Fronteiras” da Capes e consegui uma bolsa de estudos na University of Wisconsin – Madison. Durante o curso, senti a necessidade de, não somente aprimorar minha visão analítica desse cruzamento entre raça e mídia, mas de pensar formas nas quais aqueles que, como eu, se sentissem sub-representados pudessem criar formas concretas de reverter esse quadro.

Nesse período de intercâmbio, também estagiei na “Burrell Communications”, uma agência de publicidade em Chicago que tem como objetivo a promoção de imagens positivas dos afro-americanos. Lá, consideram este público como um segmento de mercado: segundo o Target Market News1 da época, um segmento composto por mais de 42 milhões de pessoas e que, se fosse um país, seria a 16ª maior economia do mundo.

De volta ao Brasil, estava lançado o desafio pessoal de criar iniciativas coletivas que fomentassem o tema do debate sobre raças na sociedade. Também queria ver uma produção maior do número de imagens do negro em contextos não associados ao senso comum (criminalidade, escravidão, submissão, só para citar alguns casos). Mas percebi que um bom ponto de partida seria um breve levantamento sobre como os brasileiros enxergavam suas identidades raciais.

Com este intuito, em 2013,  organizei com um grupo de colegas a mostra ID_BR CARA::PELE::JEITO. ID_BR é a sigla de Identidades do Brasil e o subtítulo CARA::PELE::JEITO está associado ao conteúdo da exposição composta por retratos de rosto e vídeos (feitos pelo fotógrafo Leandro Martins)  dos 25 participantes que falavam sobre identificavam racialmente e também traços sobre suas personalidades.

A iniciativa deu frutos que vieram para ficar. Em 2015, o ID_BR cresceu: virou o Instituto Identidades do Brasil, instituição sem fins lucrativos que desenvolve campanha de licenciamento do selo Sim à Igualdade Racial.

Nosso objetivo é identificar e criar uma coalizão de empresas que desenvolvam ações para promover a igualdade de oportunidades, e sejam reconhecidas por meio do uso do selo e aprimoramento dos seus resultados. O ID_BR faz palestras, dinâmicas e reuniões de planejamento com equipes corporativas para engajá-las com a temática racial. Nosso caminho é conscientizar pela empatia.”

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