Pacientes do Sanatório Pinel incluíam homossexuais e mulheres cultas

Cartas revelam o drama de quem foi internado à força pelos familiares por ter comportamentos “indesejáveis”

Por Ivanir Ferreira, no Jornal da USP

 

Desenho encontrado na pasta do prontuário de J.U., paciente do Sanatório Pinel de origem japonesa que gostava de retratar paisagens camponesas e que nunca teve um diagnóstico definido. Em liberdade, ele era trabalhador do campo. (Imagem: Reprodução/Jornal da USP)

A jovem D.D.R., de 28 anos, era dócil, casada e diariamente se ocupava dos cuidados dos filhos e da casa na São Paulo da década de 1930. Mas tinha como “mau hábito” o prazer da leitura. A alegação dos familiares para interná-la em um hospital psiquiátrico foi que, nos últimos tempos, D.D.R havia apresentado uma mudança radical de comportamento em virtude dos livros que andava lendo, cujo conteúdo tratava dos direitos da mulher e da emancipação feminina. Na carta encontrada em seu prontuário médico, ela revela preocupação com os filhos e diz querer se desquitar do marido, de quem sofria maus tratos.

Naqueles tempos em que as mulheres ainda não tinham o pleno direito ao voto (como têm hoje) e nem ao divórcio, o Brasil vivia uma ideologia eugenista de controle social. O perfil de quem era expurgado da sociedade em São Paulo, nos anos de 1920 e 1930, incluía: homossexuais, mulheres cultas e velhos. Quem revela esse drama é o linguista Antônio Ackel, que transcreveu cartas (nunca entregues aos destinatários) de pacientes do antigo Sanatório Pinel, hospital psiquiátrico localizado em Pirituba, zona norte de São Paulo. O nome é uma homenagem ao psiquiatra francês Philippe Pinel (1745-1826), pioneiro no tratamento de doentes mentais e um dos precursores da psiquiatria moderna. A pesquisa de Ackel foi realizada em seu mestrado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Agora, o linguista vai dar continuidade ao estudo em seu doutorado, que será realizado na Universidade de Groningen, Holanda.

Segundo o pesquisador, na primeira metade do século 20, o governo de Getúlio Vargas foi marcado por um discurso ideológico eugenista. O termo está ligado ao controle social por meio da melhoria genética e associado à pureza racial que resultou no Holocausto, na Alemanha. Pertencente à mesma corrente de pensamento, o médico psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva, que também fazia parte do governo Vargas, foi o fundador, em 1929, do Sanatório Pinel. Pacheco e Silva considerava que “as doenças mentais, a miscigenação das raças e tantos outros péssimos hábitos atrapalhavam a vida em sociedade e o progresso do País”, relata Ackel. Segundo o pensamento de Pacheco e Silva, “a sociedade não podia ficar exposta às reações mórbidas de psicopatas impulsivos e agressivos”. E, assim, os considerados “loucos” eram internados compulsoriamente pela família. É o caso de D.D.R, a moça que gostava de livros: ela foi internada à força pelo marido, com consentimento da própria mãe. Sua carta estava datada de 1939.

Frases soltas e desconexas: carta de um dos pacientes do antigo Sanatório Pinel, com escrita bilíngue (japonês/português). (Imagem: Reprodução/Jornal da USP)

Tendências homossexuais

Outro paciente tirado do convívio social foi N.B., de 25 anos. A alegação de seu pai era de que ele apresentava tendências homossexuais. N.B. tinha inteligência acima da média, era professor e fundou o Liceu Acadêmico de Belo Horizonte. Resolveu sair da casa paterna, assumiu a sua orientação sexual e o seu amor, e decidiu dividir a vida conjugal com o companheiro. Foi levado ao sanatório por inspetores da polícia. Durante os sete meses de reclusão, em 1935, “endereçou cartas ao pai, dizendo-se regenerado; à mãe, mostrando que tudo não passava de um mal-entendido; e outras cartas ao namorado, jurando amor eterno e dando-lhe recomendações de como agir na escola durante sua ausência”, descreve a pesquisa.

O fundador do Pinel, o médico psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva, considerava que “as doenças mentais, a miscigenação das raças e tantos outros péssimos hábitos atrapalhavam a vida em sociedade e o progresso do País”.  (Arte: Larissa Fernandes a partir dos subsídios gráficos com licença Creative Commons de atribuição de Wikimedia Commons e Visual Hunt.)

Também chamou a atenção de Ackel a carta de um senhor japonês que, pelas informações dos arquivos do sanatório, trabalhava no campo, com agricultura. No prontuário de J.U., foi encontrada uma carta (1939) bilíngue – português e japonês – com frases soltas e enumeradas, todas relacionadas ao trabalho. O paciente “desenhava muito bem” (como mostra a foto que abre este texto), priorizando paisagens camponesas, cores fortes e traços orientais. Embora a família tenha alegado comportamento estranho (não cumpria horários, agressividade e excessiva ambição) para levá-lo à internação, o paciente não teve um diagnóstico definido pelos funcionários do sanatório.

Até hoje, não se entende a razão pela qual as cerca de 60 cartas encontradas por Ackel não foram entregues.

Linguística como ciência

Detalhe da palavra pineu no dicionário. (Foto: Cecília Bastos/USP Imagem)

 

A pesquisa destrinça um texto altamente metaforizado, emotivo e fruto das condições nas quais foi produzido. Estudar a composição dessa teia metafórica é uma das possibilidades de melhor entender o que esses pacientes sentiram enquanto estavam internados”, explica o orientador da pesquisa, Marcelo Módolo, professor de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH.

Na Universidade de Groningen, na Holanda, em seu doutorado, Ackel deverá analisar com mais profundidade as narrativas das cartas, interpretá-las e contextualizá-las.

 

Por meio de estudos do linguista  húngaro Zoltan Kovecses, Ackel retirou a linguística de sua zona de conforto e a colocou em um espaço interdisciplinar com outras ciências, como a psiquiatria e a psicologia”, finaliza Marcelo Módolo.

Toda a documentação utilizada na pesquisa está disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Atualmente, o Hospital Sanatório Pinel de Pirituba pertence ao governo do Estado de São Paulo e atende pessoas com problemas de uso de entorpecentes. Como todo o sistema de saúde brasileiro, também passa por crise financeira.

A dissertação de mestrado Transcrição de cartas de pacientes do antigo Sanatório Pinel será apresentada no primeiro semestre de 2019. O pesquisador contou com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

O linguista Antonio Ackel concluiu seu mestrado na USP, com bolsa CNPq, e agora vai dar continuidade à pesquisa na Universidade de Groningen, Holanda.  (Foto: Arquivo pessoal)

Mais informações: e-mail [email protected], com Antonio Ackel, e e-mail [email protected](11) 3091-4294, com Marcelo Módolo

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