Pacto contra o racismo

A filósofa Djamila Ribeiro aponta caminhos construtivos para uma sociedade menos desigual

Por Jefferson Barbosa, do A Revista dos Livros – Pacto contra o racismo

A filósofa Djamila Ribeiro (Foto: Marlos Bakker)

Ribeiro, Djamila
Pequeno manual antirracista

Companhia das Letras • 136 pp • R$ 4,90 / R$ 14,90

O que você faz para combater o racismo? Pequeno manual antirracista é um livro de título autoexplicativo, de autoria da filósofa Djamila Ribeiro. As 136 páginas funcionam como ferramenta para criar uma mudança urgente na sociedade. O antirracismo apresentado com didatismo na obra significa ter referenciais negros e provocar e apoiar mudanças que visam destruir o racismo naturalizado e que por vezes passa despercebido. Um exemplo dessa prática seria ter mais negros ocupando posições de poder em empresas e receber remuneração equivalente à de pessoas brancas nos mesmos cargos. Não é um livro só para negros — é uma leitura obrigatória para a raça branca, pois informa de modo nítido e objetivo sobre a nossa condição enquanto negros brasileiros e enquanto sociedade.

Djamila argumenta que, enquanto não houver um acerto da dívida da escravidão ocorrida no Brasil, teremos que falar do racismo como uma denúncia e falar da negritude como uma afirmação. E, mesmo que tais reparações aconteçam, ainda assim devemos seguir falando sobre nós, para não perder nenhuma conquista. As ações afirmativas, por exemplo, servem para que no futuro não tenhamos um quadro tão desigual nas universidades e nos conselhos de empresas e times de profissionais. A política de cotas não é só para estudantes.

A autora de O que é lugar de fala? e Quem tem medo do feminismo negro? fala sobre o agora, o passado e o futuro que inscrevemos nos nossos corpos. No Brasil, 71,5% das pessoas assassinadas são negras. Antes de ser morto por uma bala da Polícia Militar, o corpo negro por vezes é submetido à objetificação, à falta de acesso a saneamento básico, à violência intelectual com o apagamento de nomes negros, à insegurança alimentar e até mesmo à negação ao serviço de saúde pública.

Somos 56% da população, e “é irrealista que numa sociedade como a nossa, de maioria negra, somente um grupo domine a fórmula do saber”, escreve Djamila. Para tanto, o livro ainda resgata alguns autores brasileiros, conta a trajetória deles e ativa as raízes da nossa história real, construindo uma política de vidas negras. Alguns desses autores são Sueli Carneiro (filósofa e fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra), o historiador e sambista Nei Lopes (autor de Dicionário da história social do samba, feito com Luiz Antonio Simas) e Kabengele Munanga, antropólogo e professor da Universidade de São Paulo.

Para Munanga, o racismo brasileiro “tem suas peculiaridades, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos, vítimas e não vítimas do racismo”. Djamila faz eco a ele ao afirmar que “é preciso identificar os mitos que fundaram as peculiaridades do sistema de opressão operado aqui, e certamente o da democracia racial é o mais conhecido e nocivo deles”.

O debate racial, geralmente, gira em torno de pessoas negras. Para a filósofa, a raça branca precisa discutir branquitude, privilégios e sua condição nessa estrutura. O incômodo de se identificar como opressor não é para geral uma culpa, mas sim um constrangimento a uma ação prática. “A branquitude também é um traço identitário, porém marcado a partir da opressão de outros grupos”, sublinha no terceiro capítulo. Djamila, como a multiartista portuguesa Grada Kilomba, põe em xeque o conceito de conhecimento, ao refutar a forma como é apresentado na maioria das vezes: majoritariamente masculino e branco.

Antirracismo também é narrar nossas vivências a partir de perspectivas de vida, no sentido de que não somos feitos de escassez e sim de fartura. O disco AmarElo de Emicida fala disso: de nossa autoestima, nossa identidade, nossas vidas. De Rachel Maia a Joaquim Barbosa, os espelhos nos garantem que podemos ser o que quisermos.

O livro versa sobre uma ideia de sociedade sem fronteiras. O poder da fronteira está em sua capacidade de regular as múltiplas distribuições das populações — humanas e não humanas — sobre o corpo da terra, e, assim, afetar as forças vitais de todos os tipos de seres, como aponta o filósofo Achille Mbembe. Ao pregar o antirracismo, Djamila expõe que temos reparações urgentes para fazer, e, ainda que os poderes oficiais deste país não sejam nada antirracistas — muito pelo contrário — devemos inventar outras formas de provocar essas transformações, seja a partir da conscientização do povo negro e de sua auto-organização, seja em relação ao entendimento da branquitude e das interseccionalidades até a mobilização de não negros que ocupam posições de poder.

A autora toma como base o trabalho da psicóloga Cida Bento que abordou o Pacto da Branquitude em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo, Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público, em que escancara um acordo silencioso entre pessoas brancas que contratam, premiam e protegem umas às outras. Djamila põe o dedo na ferida ao provocar um Pacto da Negritude entre nós, negros, e um pacto por parte de toda a sociedade contra o racismo.

Nos primeiros capítulos, ela apresenta um panorama da realidade do negro no Brasil, da negritude, do racismo e dos mecanismos racistas presentes em práticas cotidianas. Ao desenvolver suas ideias, ela avança apontando caminhos construtivos: apoiar o desenvolvimento profissional de pessoas negras, apresentar materiais didáticos que cumpram a lei de ensino de afrobrasilidades nas escolas e ser um consumidor ativo de produtos de pessoas negras, como o Teatro Negro e a Feira Preta.

Os afetos das mulheres negras também são abordados no manual. Ela resgata a escritora bell hooks e a seguinte afirmação direcionada para elas: “Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência”. Uma mulher negra, como todos, deve ser amada em suas subjetividades, respeitada em suas liberdades e apoiada em sua caminhada. Sem as mulheres negras na linha de frente, não chegamos a lugar nenhum. Nesse sentido, nós, homens negros, devemos estar vivos para apoiá-las na construção de uma sociedade livre. E Sueli Carneiro, no final de 2019, durante o encontro da Coalizão Negra por Direitos, sentenciou: “Somos continuidade, ainda estamos aqui”.

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