Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos,
a estética dos traços, a ética,
A estática. (Cristiane Sobral)
Texto: Francy Silva / Edição de Imagem: Vinicius Martins, no Alma Preta
Sempre que começo a pensar em que circunstâncias os livros começaram a fazer parte da minha vida, me perco no tempo e espaço e vou abrindo um baú de lembranças, em que palavras adormecidas começam a despertar e se fazerem presentes, depois de um longo período de ausência. De repente, me vejo com quatro ou cinco anos de idade, em uma fazenda num lugar ermo, ouvindo as histórias de literatura de cordel lidas pelo meu pai e minha mãe. Foi através dessas histórias que iniciei o meu processo de alfabetização. Morei em uma fazenda com a minha família até os meus oito anos idade. Meu pai, trabalhador rural, homem negro e de família muito pobre, nunca pode frequentar a escola, aprendeu a ler depois de adulto, com a ajuda de um dos patrões. Após decifrar o segredo das palavras, desenvolveu um fascínio por Literatura de Cordel. Todos os domingos, ele ia fazer a feira na cidade e sempre deixava um dinheiro extra para comprar um livro de cordel.
Minha mãe, declaradamente avessa a outros tipos de leitura, só se rendia as histórias de cordel. Assim, por ter apenas um livro por semana, primeiro o meu pai fazia a leitura, depois a minha mãe. Lia em voz alta, com a sua voz grave e imponente de homem da roça. Eu ouvia encantada, encostada em um canto, aqueles versos ritmados. Meu pai, absorvido pela história, raramente notava a minha presença. E eu não queria mesmo me fazer notar, para não quebrar o encanto…
Depois do meu pai, era o momento da minha mãe ler o livro, não necessariamente no mesmo dia, mas era sempre assim: primeiro o meu pai lia, depois a minha mãe. Eu, menina curiosa e inebriada pelas palavras, acompanhava ainda mais encantada a leitura feita por minha mãe. Ela lia com uma voz doce e mansa. Lia com expressividade e ritmo. Era uma atriz performando para sua única espectadora, que a olhava com olhos cheios de alumbramento.
Um dia, eu me vi lendo aqueles livros. Nunca tinha ido à escola, mas, de repente, estava lendo. Inicialmente, os meus pais acharam que eu tivesse apenas fingindo que lia. Mas não, eu estava mesmo lendo. Eles nunca souberam explicar como isso pode acontecer. Eu sei. Aprendi a ler aquelas histórias, movida pelo encantamento que elas me provocavam. Posso dizer, assim, que o meu processo de alfabetização não foi através de uma educação formal, mas pelo encantamento. Aos cinco anos de idade, através dos meus pais e da literatura de cordel, aprendi a amar as palavras. E, desde então, esse amor só aumentou, e elas tornaram-se as minhas mais fieis companheiras. Acredito que a minha escolha por fazer o curso de Letras e tornar-me uma estudiosa de Literaturas tenha tido uma influência direta desses acontecimentos da minha mais tenra infância.
Depois que aprendia a ler, tornei-me uma leitora compulsiva. Lia de tudo: rótulos de embalagens, palavras escritas em roupas, revistas, livros didáticos, cartazes, história em quadrinhos, romances, lia todo o material escrito que encontrasse. Na escola, enquanto os meus colegas se esquivavam de fazer as leituras solicitadas pelos (as) professores (as), eu fazia questão de ler. Os livros faziam parte de mim. E eu queria estar sempre perto deles. No recreio, muitas vezes, deixava de brincar para ir à biblioteca. Nela eu me refugiava e esquecia o mundo. Em meio aos muitos livros da biblioteca, escolhia o que eu iria ler através da capa. Porém, independente da imagem que estampasse a capa e por mais diferentes que fossem os enredos, uma coisa se repetia: todas as histórias que lia tinha protagonistas brancos, normalmente, homens, e quando tinham protagonistas mulheres, elas eram muito diferentes de mim. Elas tinham a pele branca e um cabelo liso e esvoaçante, assim como as mulheres que eu via na televisão, nas revistas, nos outdoors.
Certo dia, olhando os livros nas prateleiras da biblioteca da escola, me deparei com uma obra diferente de todas as que eu havia lido. Era um romance que tinha na capa uma menina negra e de cabelo crespo. A menina sorria. Eu sorri de volta pra ela. Foi um momento mágico. Pela primeira vez na vida, eu via na capa de um livro uma imagem que parecia comigo. O nome do romance era Viver Vale a Pena, de Lucília de Almeida Prado. A narrativa contava a história de Chiquinha, uma menina negra de uma família muito pobre, que para ajudar os pais trabalhava na “casa-grande” da fazenda, sendo explorada pelos patrões desde a infância.
Chiquinha comia o pão que o Diabo amassou, mas mantinha a esperança de realizar os seus sonhos e oferecer uma vida digna à sua família. Sua vida tornou-se mais doce quando um dos trabalhadores da fazenda se apaixonou por ela e os dois passaram a viver uma bonita história de amor. Mesmo sendo uma obra carregada de estereótipos negativos em relação às personagens negras, o romance Viver Vale a Pena me marcou muito, porque eu havia, finalmente, encontrado um livro em que uma menina parecida comigo era a protagonista. E, de alguma maneira, eu me via na história de Chiquinha. Assim como ela, comecei a trabalhar desde criança para ajudar em casa e, mesmo enfrentando muitas adversidades, mantinha a esperança de que dias melhores viriam.
Depois de Viver Vale a Pena, passei muito tempo até achar outro livro em que me visse representada. Demorei a encontrar, mas a descoberta foi preciosa e marcaria para sempre a minha vida. Tive contato com essa obra, ao visitar uma querida professora de Português. Fiquei maravilhada com a quantidade de livros que ela tinha em sua residência e pedi alguns emprestados. Ela, gentilmente, pediu que eu escolhesse quantos livros quisesse e lesse no tempo que fosse necessário. Estava escolhendo os livros aleatoriamente, quando me deparei com o romance A cor da ternura, de Geni Guimarães. O livro tinha uma personagem negra na capa, que também era a protagonista da narrativa, mas diferente de Viver Vale a Pena, a autora do livro também era negra. Grande foi a minha alegria ao descobrir que sim, era possível não apenas encontrar livros com personagens negras, mas saber que as mulheres e homens negros também podiam escrever as suas próprias histórias. Obra de cunho autobiográfico, A cor da ternura conta a história de Geni, a penúltima filha de uma família de oito irmãos. O livro narra a história da personagem desde a sua mais tenra infância até a vida adulta. O racismo sofrido pela personagem, em várias fases de sua vida, é um tema recorrente na obra. Em uma das cenas mais marcantes do romance, Geni descobre que as histórias sobre os negros contadas pela sua avó não coincidia com a história contada na escola. A menina entra em conflito e sofre profundamente com tal descoberta:
Hoje comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar, e pelos serviços prestados nada recebiam. Eram amarrados nos troncos e espancados às vezes até a morte. […] Vi que sua narrativa não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. Aqueles eram bons, simples, humanos, religiosos. Eram bobos, covardes, imbecis, estes me apresentados então. Não reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos. Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com cara de sarcasmo. Eu era a única representando uma raça digna de compaixão, desprezo! […] Por isso que meu pai tinha medo do seu Godói, o administrador, e minha mãe nos ensinava a não brigar com o Flávio. Negro era tudo mole mesmo. Até meu pai, minha mãe… Por isso é que eu tinha medo de tudo. O filho puxa o pai, que puxa o avô, que puxou pai dele, que puxou… E eu consequentemente ali, idiota fazendo parte da linha. (GUIMARÃES, 1998, p. 65-66).
Por não suportar mais o racismo, por sentir vergonha da forma como o povo negro era representado nos livros que estudava na escola, a menina Geni, em um ato de desespero, tenta arrancar o preto de sua pele.
Até então, as mulheres da zona rural não conheciam “as mil e uma utilidades do bombril” e, para fazer brilharem os alumínios, elas trituravam tijolos e com o resultante faziam a limpeza dos utensílios. A ideia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a tirar da panela o carvão grudado no fundo. Assim que terminou a arrumação, ela voltou para casa, e eu juntei o pó restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei e vi que diante de tanta dor era impossível tirar todo o negro da pele. (GUIMARÃES, 1998, p. 65-66)
A cor da ternura me fez reviver os momentos em que eu ,assim como Geni, quis tirar o negro da pele e ser diferente. Queria ser branca, para me sentir bonita, aceita e incluída. O meu desejo de ser branca aumentava a cada vez que ouvia um xingamento como: “neguinha fedida”, “cabelo de Bombril”, “macaca”, “beiço de mula”. A cada vez que me procurava na TV e não me encontrava. A cada vez que me olhava no espelho e percebia que jamais me achariam bonita sendo quem eu era. Geni quis arrancar o negro da pele com tijolo triturado, eu não tive coragem para tanto, eu queria mudar de cor através da intervenção divina. Quando menina, durante muitas noites, pedi a Deus, em tom de ameaça, que se Ele existisse de fato, que me fizesse dormir e acordar branca, de cabelos lisos e olhos azuis. De preferência, em outra família, para evitar confusão de ser a única branca, em uma família de negros. Deus nunca atendeu essas minhas preces. Me revoltei contra Ele durante um bom tempo, mas, assim como Geni, após um processo longo e doloroso, passei a me amar do jeito que eu era.
Depois de viver uma infância marcada pelo racismo e uma adolescência cheia de conflitos, Geni torna-se uma mulher forte e determinada. Encarando de maneira corajosa as barreiras impostas pelo racismo e ultrapassando todas elas. Ela deixa de ser objeto, para ser sujeito da sua própria história.
Para dezembro foi marcada a data para realização do evento. Minha colação de grau. […] No dia, todos estavam nervosos, mas arrumaram-se muito cedo para a cerimônia. […] Meu pai, ao lado da minha mãe, estava pleno, altivo, sereno. Com os olhos, acompanhava todos os meus movimentos, engolindo salivas de prazer. […] Fui chamada para receber o certificado. Eles, meus pais, não se puderam conter só com as palmas. Levantaram e me aplaudiram em pé. Mãos abertas, barulhentas, livres. Meus irmãos, contagiados, perderam a timidez e também se puseram em pé, me aplaudindo e apontando, como se só eu estivesse me apossando da chave do céu. Terminada a entrega dos certificados, fui convidada para discursar, por ter sido escolhida para oradora da turma […]. Em casa, tomados de euforia, começamos a lembrar os acontecimentos da festa. [..] Estava indo dormir, quando vi o meu pai procurando algo:
– O senhor queria alguma coisa, pai?
– Estou vendo onde foi que guardei o danado do diploma. Vou dormir com ele debaixo do travesseiro que é pra sonhar sonho bonito. (GUIMARÃES, 1998, p. 82-86).
Sempre digo que nós, mulheres negras, nos vemos nas histórias das outras. E eu, muitas vezes me vi na história de Geni. Não só nos momentos tristes, mas também nos alegres. Geni formou-se professora para o contentamento de toda a sua família, cumprindo uma promessa feita ao seu pai. Anos depois, me vi repetindo a história dela. Filha de um pai que nunca frequentou a escola, tornei-me professora, e também fiz o discurso de oradora da turma. No dia da formatura, minha família, assim como a de Geni, não cabia em si de tanto orgulho. E eu não cabia em mim de emoção e contentamento por poder proporcionar aquela alegria pra eles.
Fui a primeira pessoa de minha família paterna e materna a entrar em uma universidade e concluir um curso superior. Passei quatro anos e meio dentro de uma universidade, cursando a graduação em Letras e durante todo esse tempo, o único escritor negro brasileiro que estudei foi o Machado de Assis. Fiz uma disciplina de Literaturas Africanas e conheci alguns escritores negros dos países africanos de língua portuguesa. Porém, durante toda a minha graduação não estudei a obra de nenhuma mulher negra. Recitava nos saraus poemas de escritoras negras, mas não me questionava o porquê desses textos não serem incluídos na grade do curso.
Machado de Assis é um dos principais nomes da literatura brasileira
Em 2009, participei do Congresso Baiano de Pesquisadores Negros e conheci Isabel Ferreira, uma escritora angolana. Em sua palestra, Isabel falou sobre a expansão dos estudos das Literaturas Africanas no Brasil, mas que a incomodava o fato das universidades negligenciarem a produção literária de mulheres africanas, sobretudo, mulheres negras, priorizando o estudo das obras dos homens, principalmente, homens africanos brancos. Em poucos minutos, ela me fez refletir sobre as muitas questões que me angustiavam na minha graduação e que eu não conseguia exprimir. Percebi, naquele momento, que grande parte das obras literárias e teóricas, estudadas na minha graduação, tinha sido produzida por homens brancos. O conhecimento que havia adquirido tinha cor, sexo e classe social e eu precisava fazer alguma coisa que pudesse contribuir para a mudança desse paradigma. Então, tomei uma decisão que mudaria a minha vida: estudar a produção literária de mulheres negras. No final da palestra, fui conversar com a escritora Isabel Ferreira e disse a ela: “vou estudar as suas obras na minha monografia”. A partir desse dia, pesquisar e divulgar a literatura produzida por escritoras africanas e afro-brasileiras tem sido a minha desafiadora e prazerosa missão. Mas essa história depois eu conto…
“Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, escrever adquire um sentido de insubordinação”. (Conceição Evaristo)