Beneficiados por diferentes programas dizem que as cotas deram “coragem” para tentar o vestibular, objetivo que parece inalcançável para a maioria dos egressos de escolas públicas
Por: Priscilla Borges
Há nove anos o mineiro Giovanni Rodrigues Gonçalves, 27 anos, deixou a cidade onde nasceu e cresceu, Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, para mudar a própria vida. Escolheu o Rio de Janeiro. Mas, ao contrário de muitos filhos de famílias humildes com poder aquisitivo baixo, não queria trabalho. Ele queria estudo de qualidade.
Na capital carioca, encontrou um estímulo para tentar o que parecia impossível: ser aprovado no vestibular de uma universidade pública. O “empurrãozinho” que recebeu, segundo ele, foi o programa de cotas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “Fiquei sabendo que, no Rio, havia essa oportunidade e fui atrás”, conta.
A UERJ foi a primeira universidade do País a adotar políticas afirmativas, em 2003. Já recebeu mais de 7 mil alunos pelo programa. Assim como no projeto que regulamenta as cotas nas federais, aprovado esta semana no Senado , a prioridade do programa da estadual carioca é para estudantes de escolas públicas. Mas há outros recortes na reserva de 45% das vagas feitas pela instituição.
Todos os candidatos ao sistema de cotas da UERJ precisam comprovar carência financeira. Depois, eles escolhem o recorte pelo qual desejam entrar na disputa das vagas: 20% são para estudantes de escolas públicas, 20% para negros e indígenas, e 5% para pessoas com deficiência e os filhos de policiais civis, militares, bombeiros ou inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.
Giovanni poderia concorrer em qualquer uma das categorias. Afrodescendente, estudou a vida toda em escola pública e é deficiente físico. Teve um encurtamento nos tendões das pernas, única consequência da falta de oxigenação provocada por uma paralisia cerebral durante o parto. Os médicos não lhe deram 40 minutos de vida. “Até os 15 anos, minha mãe não me deixava ir à padaria sozinho. E hoje estou aqui”, conta.
Para o jovem mineiro de 18 anos, ir para o Rio se tornou a possibilidade de alcançar o sonho de cursar Direito em uma universidade pública. Deixou a família para trás e foi morar sozinho no Complexo da Maré, onde fez pré-vestibular comunitário. “Minha família é humilde e lá em Belo Horizonte só quem teve uma boa estrutura educacional a vida toda consegue passar no vestibular da federal”, diz. No primeiro vestibular de 2005, passou no curso de Direito.
Outra cotista, Avanny Tatiane de Oliveira, 24 anos, de Maceió, conta que as cotas também lhe deram coragem de tentar o vestibular da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). “Eu achava muito difícil. Como estudante de escola pública, sabia que tinha defasagens e a universidade pública, para mim, era só para quem era rico e tinha condições de pagar um bom colégio. As cotas foram uma oportunidade”, pondera. Há um ano, ela se formou em Jornalismo.
Garantia de direitos
Os dois estudantes cotistas não se intimidam frente às críticas feitas ao sistema que lhes concedeu o benefício que, talvez, tenha sido determinante para a aprovação deles na universidade. Na opinião de Giovanni e Avanny, as políticas de ações afirmativas são necessárias para garantir que jovens de condições desfavoráveis exerçam seu direito de fazer um curso superior.
“Para mim, as políticas de ações afirmativas ajudam a exercer um direito que deveria ser garantido a todos. No nosso cenário de desigualdades, elas são necessárias. Claro que esse não é o mundo ideal, mas são paliativos importantes e têm período de duração”, analisa Giovanny, que acompanhou o amadurecimento da política na UERJ.
Nelson Inocêncio, professor da Universidade de Brasília (UnB), que participou da criação do sistema de cotas para negros da instituição , acredita que todos os processos de inclusão são importantes. Ele reconhece que é preciso dialogar sobre métodos de aplicação das regras do novo projeto, caso sancionado, mas vê nas políticas uma forma de “mudar a história da universidade pública”, que foi restringida a poucos nas últimas décadas.
O investimento na educação básica, para eles, deve ser intensificado. “Isso não seria necessário se o ensino básico tivesse uma qualidade melhor. As cotas são uma esperança para quem faz um ensino médio precário. E parece que as coisas no Brasil só acontecem com uma lei, então esse projeto (aprovado no Senado), é bom”, completa Avanny.
Desconfianças e qualidade acadêmica
As ações afirmativas estão sempre envolvidas em polêmicas sobre mérito dos estudantes cotistas e qualidade acadêmica. Giovanny resume a chegada ao primeiro dia de aulas em uma palavra: desconfiança. Enfrentar a falta de confiança de professores e colegas na capacidade dos cotistas de acompanhar o curso e ser um bom profissional é a grande dificuldade.
Nas instituições pioneiras, no entanto, dados de rendimentos dos alunos e estudos com os cotistas têm comprovado que, se eles tiverem apoio financeiro para continuar frequentando as aulas e, às vezes, acadêmico antes de começar o curso, o desempenho deles é igual ou melhor do que o dos não-cotistas.
“As universidades têm seus próprios critérios para manter a qualidade acadêmica. O aluno que não mantém sua produção pode ser desligado. A cota é só um acesso”, argumenta Inocêncio. A UERJ e a Ufal, por exemplo, mantém programas para ajudar os estudantes academicamente. Aulas extraclasse, ajuda de monitores e auxílio financeiros fazem parte dos projetos.
Clara Suassuna, professora de História da Ufal e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da instituição, conta que hoje a resistência de professores e alunos não-cotistas às ações afirmativas é bem menor. “Mas não vamos conseguir mudar mentalidades com um programa. É um processo de educação lento”, reconhece.
A Ufal já recebeu mais de 4 mil estudantes pelo sistema de cotas. Lá, o programa tem um recorte único no País: de gênero. Dos 20% das vagas totais reservadas aos estudantes que se declaram afrodescendentes e que cursaram o ensino médio na rede pública (ou bolsa integral na rede privada), 60% são destinadas às mulheres e 40% aos homens.
Fonte: iG