A categoria “enredo afro” me soa sempre como um pleonasmo, algo como “feijoada brasileira” ou “fado português”. Ninguém é obrigado a nada, mas escolher honrar e celebrar a vida de mestres como Clementina de Jesus, Laíla, Milton Nascimento e Malunguinho é também defender a vida de anônimos como Igor Melo e Thiago Marques. É a nossa forma de fazer justiça, de “acender tudo que for de acender”. Se não for assim, como disse Milton Cunha, falaríamos de quem, da Branca de Neve, de Donald Trump?
A minha revolta tem sido grande e não peço desculpas por ela, a minha revolta é do tamanho da minha vontade de viver. Eu ainda estava nas comemorações do meu aniversário, na última segunda-feira, quando a notícia de que Igor Melo havia sido alvejado pelas costas por ser “confundido” com um assaltante chegou. Igor é estudante universitário e tem pelo menos três trabalhos.

Ele e Thiago ainda permaneceram mais de 24 horas sob custódia, porque a presunção de inocência não existe neste país, e família e amigos tiveram que lutar para provar que eles não eram assaltantes de celular.
Sabe, meu novo hobby é assistir a vídeos rasos sobre temas profundos como filosofia, psicologia e outros, na hora do almoço. Na segunda-feira, o algoritmo tinha me sugerido um vídeo sobre Carl Jung e foi bonito, até anotei frases do tipo “você não é aquilo que aconteceu com você, e sim o que você resolve fazer depois disso”.
Pensei em mim e me orgulhei por ter decidido, neste ano, voltar a ser alguém que comemora aniversários. Quem lê esta coluna há mais tempo (este mês serão nove anos!), sabe que demorei a voltar a comemorar meu aniversário. Eu estava lá ouvindo aquele vídeo aleatório enquanto lavava a louça e naquela hora eu amei Jung, amei o carnaval e o enredo da Portela, que este ano homenageia Milton Nascimento e diz que “quem acredita na vida não deixa de amar.” Naquela hora, o meu peito era pura esperança carnavalesca.
Mas depois, quando recebi a notícia do Igor, odiei Jung e o carnaval e o meu aniversário. Naquela hora, o amor e a esperança me pareceram grandes privilégios. A possibilidade de ser quem a gente deseja ser me pareceu uma utopia. Quando alguém perde um rim voltando para casa depois do trabalho, nada mais importa.
Eu me imaginei conversando com o Igor e dizendo a ele com a cara mais lavada do mundo: sabe, você não é aquilo que aconteceu com você, e sim o que você resolve fazer depois disso. Na segunda-feira, eu senti tanta raiva que, se o Igor quisesse tacar fogo no Rio de Janeiro, eu estaria ao lado dele com uma tocha na mão. Mas não, o Igor fez vídeo dizendo que estava melhor, sorriu, pediu orações, agradeceu à família e aos orixás. Igor pediu por justiça.
Ninguém é o mesmo depois de sair do trabalho e levar um tiro nas costas. Eu digo por experiência que nenhuma família é a mesma, nenhuma mãe, nenhum pai, nenhum filho, filha, esposa, marido. Ninguém é o mesmo. Eu não sou a mesma, mas eu oro para que a gente continue tentando ser. Não o que o trauma, o racismo e a violência tentam fazer de nós, mas o que a gente deseja ser, o melhor de nós.