Para sempre?

A revista “Veja” comemora esta semana, com muitas páginas numa seção denominada “História”, o centenário de Joaquim Nabuco, texto de Vilma Gryzinski (edição nº 2147, 13 de janeiro de 2010). A reportagem despudoradamente insiste no mito Nabuco, a quem chama de herói nacional da mais justa de todas as causas.

Nabuco brilhou principalmente nos teatros, onde se teria travado o principal combate da campanha abolicionista, segundo a reportagem de “Veja”. Uma campanha teatral, acompanhada de suspiros femininos, lencinhos pintados e pétalas de rosa. A mais justa causa e a mais elegante de todas as campanhas.

A base que sustenta a estátua de Nabuco, segundo Gryzinski, é o “imperativo moral”, um mandato da consciência a que não se pode renunciar, principalmente por sua origem remota na pureza e inocência da infância de filho de escravocrata que se compadeceu com o sofrimento do escravo supliciado e suplicante. Cena clássica de novela de época.

As conhecidas contradições de Nabuco, que deixavam aflorar os interesses de classe e o racismo, são tratadas com desprezo ou omitidas pela reportagem. Tudo não passaria, na visão simplista e deslumbrada de Gryzinski, daquelas manifestações que costumam revelar “a complexidade e os questionamentos que se esperam dos intelectuais superiores”.

A abolição da escravatura foi assim a obra de um intelecto superior: Joaquim Nabuco. Superior e belo. “Branco alvíssimo”, preocupado com a aparência e a moda, etc. Do estrume da escravidão, nasceu a bela flor abolicionista. De nosso pior, emergiu “o melhor que o Brasil conseguiu oferecer”.

Como os negros são, na reportagem de “Veja”, meras ilustrações fotográficas, imagens de corpos dominados apreendidas por fotógrafos brancos, depreende-se que a abolição que se fez em combates travados nos teatros e parlamentos, controlada pelos senhores de escravos e seus representantes, foi o resgate do melhor da classe senhorial, que encarnava conseqüentemente o melhor do país, sua essência perene.

Para Gryzinski, portanto, o negro é uma fotografia na parede e em seu texto de glorificação de Nabuco não existe nenhuma alusão a outros abolicionistas. André Rebouças, por exemplo.

Conforme ensaio recente de Maria Alice Rezende de Carvalho (“André Rebouças e a questão da liberdade”, que faz parte do livro Um Enigma Chamado Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 48-59), Rebouças, que publicou suas idéias em livro sobre a democratização da propriedade da terra, no mesmo ano (1883) em que Nabuco divulgava seu “O Abolicionismo”, se incluiria entre os perdedores na disputa de projetos de Brasil na transição da Monarquia à República.

No projeto defendido por André Rebouças, “a liberdade que emergiria do processo de abolição da escravidão somente seria efetiva se referida a um fundamento material – propriedade da terra – e a uma dimensão coletiva…”. Para a autora, “Rebouças se distanciava dos pressupostos liberais, o que o tornava um estrangeiro em relação ao debate político do período final do Império”.

Enquanto se comemora Nabuco, se apaga intencionalmente a memória da participação negra (protagonismos e sacrifícios no campo e nas cidades, idéias e projetos políticos para um Brasil democrático). O título da reportagem de “Veja” é “Herói nacional para sempre”, no qual obviamente se encontra manifestação de desejo das elites, que a revista representa, de perpetuar a dominação e sua perspectiva da história. “Veja” configura o passado de olho na eternidade.

Precisamos de um movimento negro capaz de discutir projeto político e alternativa de poder, resgatando a experiência histórica que permanece soterrada. André Rebouças é, sem dúvida, uma das fontes desse diálogo histórico que precisamos retomar em profundidade.

Fonte: Írohín

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