Ronelle King estava, conforme ela mesma diz, “a ponto de explodir” em 2016. Escutava comentários maliciosos masculinos quase todas as manhãs, no trajeto ao trabalho. Chegou a ser puxada para dentro de um carro por um homem que queria “lhe dar uma carona”, mas escapou ao sair correndo. Denunciou o ocorrido à polícia, que fez pouco caso. Trocou o ônibus pelo táxi para se sentir mais segura.
Por Paula Adamo Idoeta Do BBC
As experiências “aterrorizantes” levaram a jovem de 25 anos, natural da ilha de Barbados, no Caribe, a pensar: como lidar com essas angústias, conectar-se com outras vítimas e, ao mesmo tempo, mostrar aos homens como esses comportamentos impactam as mulheres?
King decidiu criar, com a ajuda de uma amiga, a hashtag #LifeinLeggings (“a vida usando calças leggings”, em tradução livre), para relatar online a violência sofrida por ela própria – e convidar outras mulheres a fazer o mesmo.
A iniciativa acabou dando origem a um dos maiores movimentos femininos recentes do Caribe, que se espalhou por 11 países da região, mobilizou homens e mulheres em protestos populares e tem gerado pressão por mudanças na legislação local.
‘Sequer percebem que é assédio’
“Mulheres caribenhas são vistas mais como propriedade (masculina) do que como seres autônomos, e os homens sequer percebem que se trata de assédio. É algo invasivo a ponto de se tornar assustador”, explica King à BBC Brasil em São Paulo, onde a barbadiana participou do Colóquio de Direitos Humanos da ONG Conectas.
Struggling to find my own words to summarise the incredible #lifeinleggings walk over the weekend #feministproblems pic.twitter.com/SIO9Q9rjYa
— M a l o u (@skiptomalouuu) 13 de março de 2017
“Quis criar uma plataforma onde as mulheres pudessem falar de suas experiências e mostrar que não se trata de casos isolados.”
O nome, Life in Leggings, foi escolhido por se tratar de “uma peça de roupa usada por todos os tipos de mulheres, de crianças a mulheres mais velhas – todos os espectros que são vítimas de abuso”.
Além disso, essas calças são populares no Caribe. Só que, por serem justas, são comumente vistas como “sedutoras”.
“Queríamos desmistificar a ideia de que a roupa é parte do motivo pelo qual uma mulher é assediada ou estuprada”, explica King.
“Às vezes mudamos nossas rotas para evitar os homens, e não funciona. Às vezes trocamos de roupa, e não funciona. O assédio continua. Às vezes eu sorria e declinava educadamente (os convites de assediadores), mas o efeito era reverso, porque eles se sentiam encorajados. Chega a um ponto em que as mulheres simplesmente se frustram com isso. Quando a sociedade normaliza o assédio e culpa as mulheres por ele por conta da roupa que ela usa, esse assédio escalona.”
Debate amplificado
A iniciativa caribenha se assemelha à promovida no Brasil em 2015, quando centenas de mulheres compartilharam online histórias com a hashtag #meuprimeiroassédio. O tema volta à tona em um momento em que ocorrem no país diversos casos de assédio e abuso sexual no transporte coletivo brasileiro.
E, assim como no Brasil, o compartilhamento de histórias online rapidamente viralizou no Caribe, com milhares de participações via Facebook, Twitter e Tumblr.
Segundo King, no primeiro dia de uso da hashtag, abriu-se uma discussão nacional sobre o tema em Barbados. No dia seguinte, a discussão chegou a Trinidad e Tobago. No terceiro dia, à Jamaica e a outras ilhas caribenhas.
Todos são países com altas taxas de violência contra a mulher.
Segundo dados da ONU, Bahamas, Jamaica e Barbados estão entre os dez países do mundo com mais registros de estupro.
Uma pesquisa realizada em Barbados para a Unicef em 2014 identificou que, para 76% das pessoas entrevistadas, a violência doméstica era “um grande problema”, e 36% delas disseram conhecer alguém próximo “que vivenciou violência doméstica por parte de um parceiro”.
De volta ao Life in Leggings, um dos passos seguintes foi organizar, já em 2017, manifestações pelos direitos femininos nas ruas de sete ilhas caribenhas.
King conta que um dos aspectos mais interessantes das manifestações online e presenciais foi a participação masculina.
“A grande maioria deles reagiu dizendo que não percebia que era essa a realidade das mulheres, entenderam o nível de medo a que as mulheres são submetidas e pensaram nas mulheres de sua vida e em seu papel para erradicar essa cultura e na forma como podem estar perpetrando ela”, comemora.
Para a ativista, isso é crucial para provocar mudanças reais: “até então, o foco do debate não eram os abusadores, mas sim (o comportamento das) mulheres”.
Legislação
O movimento se converteu em organização – Life in Leggins Aliança Caribenha Contra a Violência de Gênero – e King tem voltado seus esforços para mudanças legislativas em Barbados: ela defende uma emenda na lei de informática do país para definir e punir o assédio virtual e a “pornografia de vigança”, além da revisão de uma lei contra o assédio sexual no ambiente de trabalho. Essa última é esperada para o fim deste ano.
Atualmente, segundo King, o assédio é tratado como um pequeno delito e, portanto, “não é levado a sério”.
“É uma lei pendente há 15 anos. Já ouvimos antes essa promessa (de endurecimento da lei), mas agora estamos mais esperançosas”, diz King.
King diz que nunca recebeu ameaças por causa de seu ativismo, mas já ouviu críticas masculinas “de que eu e todas as mulheres que compartilhamos nossas histórias estávamos mentindo e atrás de atenção. Mas a maioria das pessoas os ignoraram, porque as estatísticas (de abuso) não mentem”.
A experiência do compartilhamento, segundo ela, fez as mulheres perceberem “que não estavam sozinhas e que o problema não estava nelas”.
“Criou-se um sentimento de solidariedade. Foi algo poderoso, porque no Caribe não se costuma falar de estupro. Costumamos esconder sob o tapete, porque são países tão pequenos que (falar a respeito) é visto como algo que causa vergonha às famílias.”