Hipersexualização das mulheres incentiva assédio a passistas e rainhas da bateria de escolas de samba; confira relatos de 3 mulheres que vivem essa rotina
Por Lara Santos, Do Catraca Livre
Se o Brasil é reconhecido mundialmente pelo Carnaval, deve-se principalmente pela majestosidade de cenários, figurinos, canções e pessoas que compõem os desfiles de escolas de samba que acontecem em todo o país. No entanto, a data também é retratada pela hipersexualização das mulheres, sobretudo das passistas e rainhas de bateria das agremiações.
Essa visão, presente em propagandas, músicas, filmes e discursos, alimenta preconceitos e comportamentos machistas a respeito dessas mulheres nos desfiles e ensaios carnavalescos. Muitas pessoas entendem o fato de elas estarem vestidas com pouca roupa, de dançarem e sorrirem para a plateia, como um convite para o assédio. Mas não. É parte de uma tradição.
“Muitas mulheres, independentemente da rotina, usam o Carnaval como um refúgio, um alicerce”, explica Thatiane Borges, passista na Unidos de Vila Maria, escola de samba de São Paulo. “Nós levamos entretenimento para as pessoas, fazemos elas sorrirem por meio da dança. Não é só o corpo sendo mostrado. O samba cura, salva vidas.”
Mayra Barbosa, de 27 anos e que desfila há 24, concorda. “Sou nascida e criada no Carnaval, aprendi a amar essa cultura maravilhosa na qual aprendemos a ser um ser humano melhor”, conta a musa da Nenê de Vila Matilde e rainha da bateria da Dom Bosco de Itaquera. “Vai além do samba. Significa ser uma mulher de ética e que respeita o próximo.”
Casos de assédio em desfiles
Mas esse respeito nem sempre é uma via de mão dupla. Pedidos para tirar fotos inapropriadas, toques sem consentimento e olhares invasivos são parte da rotina das passistas e rainhas de bateria. No entanto, esse tipo de assédio ocorre, na maioria das vezes, por parte do público de fora.
“Para as pessoas que estão dentro do Carnaval, nós somos um componente que agrega a nossas comunidades”, diz Mayra. “Para quem é de fora, tenho ciência de que somos vistas de uma forma sensual pelas nossas vestimentas e performance.”
As mulheres, portanto, estão mais sujeitas a violências de gênero quando estão em meio aos desfiles, onde há menos controle de entrada no local. “Em dias de desfile, não há como prever. Para estar ali, é só comprar um ingresso”, relata Gabriela Viana, passista da Mancha Verde desde 2008. “Sempre existem os ‘engraçadinhos’ que acham que devem e podem falar o que querem.”
Para ela, essas situações são desconfortáveis, mas menos importantes do que o momento que está vivendo. “Estamos tão entregues no desfile, que acabamos nem absorvendo aquilo que escutamos. Mas é claro que não queremos ficar ouvindo barbaridades”, conta.
No caso de Thatiane, não foi possível ignorar. Um fotógrafo não oficial do evento perguntou se podia tirar uma foto dela e de uma amiga, e passou dos limites. “Ele pediu para a gente virar de costas e disse que ia tirar uma foto bem legal. Eu neguei”, descreve. “Não é porque eu estava lá para dançar que ele podia tirar foto da minha bunda.”
Além de se impor, há outras maneiras de se protegerem de possíveis assédios. “Na hora de tirar foto com o público, nós temos vários truques. Pegamos a mão da pessoa e colocamos na cintura, como se fossemos prendê-la”, informa. “Não tem mais naturalidade. Precisamos nos defender, pois eles [os homens] não têm limites”.
Mas não é só durante o período de Carnaval que os comportamentos machistas acontecem. Elas também atuam profissionalmente em outras áreas, nas quais também são vistas de maneira preconceituosa.
“Na minha rotina, se alguém fica sabendo que sou passista, eu perco um pouco da minha credibilidade”, explica Thatiane. “Sou vendedora de uma importadora e já ouvi coisas como ‘dá um desconto melhor, dá uma sambadinha aí que você fica melhor na negociação’.”
Atitude das escolas de samba perante aos assédios
Apesar das violências de gênero no Carnaval serem recorrentes, as escolas de samba de São Paulo se posicionam fortemente sobre o assunto, assim como a Liga SP, responsável pela organização dos desfiles oficiais da cidade.
“Não acontece na Mancha Verde por conta da cultura do presidente da escola”, diz Gabriela. “Nos ensaios, quando recebemos gente que não é do meio, ele sempre deixa muito claro que na quadra você vai encontrar mulheres de short curto, calça apertada, vestido transparente, e que isso não significa que elas estão à sua disposição.”
Ela conta que o ambiente dos ensaios é tão familiar que ela leva a filha dela e a deixa solta na quadra. “Acompanhada ou não, é seguro. Às vezes [em outros lugares] a gente precisa de um homem para nos sentirmos assim.”
O mesmo acontece na Unidos de Vila Maria. Segundo Thatiane, há reuniões da escola em que conversas sobre o respeito à mulher são frequentes e que há treinamentos para evitar possíveis assédios. “Os harmonias [integrantes que garantem o entrosamento dos que desfilam de acordo com o ritmo e canto do samba-enredo] fazem uma corrente de pessoas para ninguém chegar perto da gente. Assim, dançamos de forma mais tranquila”, conta. “Quando alguém pede para tirar uma foto, eles também verificam se estamos confortáveis com isso.”
Mayra também confirma a boa postura da Nenê de Vila Matilde e da Dom Bosco de Itaquera diante dessas situações. “Como o próprio nome diz, somos uma escola. Além do sambar, aprendemos a respeitar o próximo, mostrando que não somos objetos e estamos ali em prol de um bem maior.”
Esperança para o futuro
O Carnaval é uma tradição mundial milenar, mas já passou por diversas transformações no Brasil para se tornar como é conhecido hoje. O samba, por exemplo, que surgiu na década de 1910 e era criminalizado e perseguido na época, foi introduzido apenas a partir da popularização da festa. Além disso, as escolas de samba existem apenas há um século e foram criadas por associações nos bairros populares do Rio de Janeiro.
Essas mudanças proporcionam esperança para o futuro das passistas e rainhas da bateria, que já veem diferença na forma como as mulheres são tratadas de alguns anos para cá. “Nós estamos nos impondo, sabendo o nosso papel da sociedade. Podemos ser quem quisermos”, declara Mayra. “Desejo que, cada vez mais, esse estereótipo de objeto sexual seja desvinculado e que sejamos respeitadas como todos devem ser.”
“Hoje, querendo ou não, existe um espaço maior para discutirmos isso. As pessoas que um dia julgaram ficam mais na defensiva”, concorda Thatiane. “Elas pensam melhor para falar, pois podem se prejudicar, já que estamos sendo mais ouvidas.”