O discurso de que a palavra de Deus coloca a mulher em posição de submissão ao homem sempre incomodou a pastora Odja Barros. “Argumentar dizendo ‘É bíblico’ é terrível. Impede o diálogo, é simplesmente para fechar uma postura conservadora e encerrar a conversa. Eu discuto, hoje, como especialista”, diz a pastora da Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió.
Por Carlos Madeiro, no Universa
Agora doutora em Teologia, ela concluiu sua tese estudando o feminismo sob a ótica cristã e afirma: existe um uso indevido do cristianismo para manter a mulher em papel de submissão. “Usam e abusam da palavra, dizendo que é de Deus, para tentar colocar de novo as mulheres em lugar de submissão e de inferioridade”, afirma a Universa.
A pastora Odja prepara um livro, que deve sair em abril, com achados de sua pesquisa. A ideia é ajudar a derrubar muros machistas que ainda permeiam o cristianismo. Para ela, há um uso indevido da Bíblia como “instrumento de legitimação de um projeto de poder.” “Grupos privilegiados desejam retomar com força a supremacia machista, branca e de classe média”, diz, citando que Jesus Cristo foi um dos maiores defensores da causa feminista.
Jesus é a maior inspiração para o feminino cristão; foi árduo defensor da causa das mulheres. Enfrentou as estruturas machistas e patriarcado presente nas estruturas religiosas da época, que tratavam a mulher como um ser de segunda categoria
Há exatos 20 anos, ela criou o grupo de estudos bíblicos do feminismo chamado Flor de Manacá. “Essa onda conservadora, assustadora, de intolerância, de ódio em nome de Deus, em nome da fé, em nome da defesa de um purismo cristão, me assusta profundamente, mas ao mesmo tempo me desafia”, afirma.
Leia os principais trechos da entrevista:
UNIVERSA: De onde surgiu seu interesse em pesquisar o feminismo cristão?
ODIA: Inicialmente, meu interesse não foi o feminismo, mas aprofundar o estudo das escrituras, que sempre foi uma paixão. Dentro dessa perspectiva, eu me encontrei com com os estudos que já existiam na área teológica e bíblica sobre uma perspectiva feminista. Então, na verdade, eu descubro na minha busca por aprofundamento o fundamento bíblico teológico um movimento que já tinha mais de 100 anos fora do Brasil. Já tinha todo um trabalho de teologia feminista que eu desconhecia.
Fui me apropriando de releituras de estudos bíblicos numa ótica feminista e de gênero e fui me encantando durante o processo de formação teológica. Um dos argumentos que sempre desafiam o feminismo é que a Bíblia citaria que a mulher, por exemplo, deve ser submissa ao marido.
Isso te incomoda?
Antigamente os estudos bíblicos eram uma ciência muito masculina, as mulheres não tinham muito espaço na ciência bíblica e teológica. Por exemplo: estudar a origem dos textos, estudar os textos em suas línguas originais, se apropriar das ferramentas interpretativas. Isso era privilégio de homens. A abertura conquistada fez com as mulheres se apropriassem das ferramentas exegéticas de análise de texto para poder desmontar as interpretações patriarcais dos textos bíblicos.
Possibilitou também responder a o problema da raiz patriarcal da Bíblia. Eu tenho dito: a Bíblia é um texto patriarcal, forjado numa realidade, numa sociedade patriarcal da religião judaico-cristã.
A Bíblia traz em si as marcas dessa cultura patriarcal. Mas o problema não é só o texto, mas as interpretações machistas e patriarcais feita por homens desse texto com intenções de manter a ordem patriarcal da sociedade e da igreja
Então a Bíblia tem um grande problema na sua origem, no texto em si, mas eu diria que esse não é o maior deles, porque com as ferramentas e a leitura histórica do texto você pode separar joio de trigo. Quero dizer, compreender o que são marcas da cultura patriarcal do texto e o que é palavra de Deus. A Bíblia é uma mistura de palavras humana com palavra de Deus. Essa mistura que está na Bíblia e nas narrativas nelas contidas.
A revelação bíblica se deu em uma cultura machista, patriarcal. Então, é natural que encontremos essa mistura. Ao mesmo tempo que você encontra na Bíblia palavras como: “mulheres, sejam submissas aos seus maridos” ou “mulheres, estejam caladas na igreja”, encontramos palavras maravilhosas de libertação para as mulheres, revelações fantásticas que trazem a mulher para um outro lugar da dignidade, de igualdade.
Por isso, muitas mulheres hoje têm se dedicado aos estudos bíblicos na perspectiva feminista, fazendo a releitura desse texto na perspectiva das mulheres e de gênero. E isso é muito importante no atual contexto onde a Bíblia tem sido usada como uma arma de intolerância e violência contra as mulheres e outros grupos atacados pelas leituras e interpretações fundamentalistas.
É comum hoje ouvir algo com base religiosa se colocando sob conceitos sociais e políticos. Como a senhora vê essa questão?
O que temos visto na conjuntura política por parte de muitos grupos conservadores é uma apropriação do discurso religioso, fazendo usos e abusos da Bíblia como instrumento de legitimação de um projeto de poder. Isso demonstra o forte poder simbólico que tem esse livro em um contexto de maioria religiosa hoje. Grupos privilegiados desejam retomar com força a supremacia machista, branca e de classe média. Usam e abusam da palavra, chamada de Deus, para tentar colocar de novo as mulheres em lugar de submissão, de inferioridade.
Em seu doutorado, a senhora estudou Bíblia na perspectiva feminista. O que descobriu?
Descobri que a Bíblia é um texto valiosíssimo, é um texto polissêmico, que traz muitos discursos e narrativas. Dependendo de quem se apropria de sua interpretação, pode se tornar um livro perigoso. Pode dar fundamentos a projetos de opressão ou libertação. Digo assim: o maior problema não é o texto. O maior problema é quem se utiliza para criar uma ideologia. Fala-se tanto hoje de uma dita ideologia de gênero. Mas, a ideologia de gênero que sempre predominou na leitura e interpretação da Bíblia foi uma ideologia patriarcal-machista que sempre conduziu a leitura desse contra mulheres, comunidade negra, indígena e LGBT.
Todos esses grupos sofreram e ainda sofrem com violências perpetradas a partir das interpretações bíblicas de ideologia racista e patriarcal.
Nosso trabalho é dizer: espera aí! Existem outras leituras e outras interpretações possíveis. Que Bíblia escolheremos ler? Ela pode ser lida através de diferentes perspectivas e enfoques.
Na história, a Bíblia já foi instrumento de opressão e libertação. Na mão de um grupo de mulheres orientadas por uma outra hermenêutica bíblica, pode ajudar a construir um projeto de libertação.
Mas esse discurso existe?
Existem muitos discursos na Bíblia. O discurso patriarcal e machista é predominante, não dá para negar. Mas existe um contra-discurso também, que se contrapõe a esse, que coloca a mulher no lugar de dignidade e igualdade. Existe uma disputa de narrativa no próprio texto, e é muito interessante.
Existe então uma parte feminista na Bíblia?
Existe. Esse termo feminismo é recente, mas eu digo que a luta por dignidade das mulheres que a gente chama feminismo hoje, está completamente enraizado no texto bíblico. Alguém já me perguntou: Jesus foi feminista? Não posso dizer que Jesus foi feminista porque o termo é recente na história, mas eu posso dizer que Jesus é a maior inspiração para o feminino cristão que você vê hoje no mundo religioso.
Jesus foi árduo defensor da causa das mulheres. Enfrentou as estruturas machistas presente nas estruturas religiosas da época que tratavam a mulher como um ser de segunda categoria.
Ele enfrentou o machismo?
Sim, claramente. Quem já leu os Evangelhos e não consegue enxergar? A lei mosaica, por exemplo, condenava uma mulher acusada de adultério —e nem precisava de prova— a ser apedrejada publicamente.
No Antigo Testamento, se legitimava a morte dessa mulher por apedrejamento. E existe uma passagem incrível e conhecida no Evangelho de João capítulo 8 que conta que uma mulher flagrada em adultério (não identificada pelo nome) é levada a Jesus para que ele participe da aplicação da lei condenando a mulher.
Na verdade, aquilo era uma armadilha para os dois: para mulher e para Jesus. Porque se Jesus contraria a lei publicamente, também pode ser acusado de ir contra a lei e ser apedrejado. E ele usa de muita sabedoria e coloca a própria vida dele em risco também para defender uma mulher acusada de adultério. Ele enfrenta aquilo que era o poder maior do mundo religioso da época, que era a lei! Ele faz isso para defender a vida dessa mulher.
Fora isso, ele incluiu no seu grupo de discípulos mulheres que não tinham participação na vida pública, que não tinham direito a frequentar as escolas judaicas —que eram exclusivas para homens. Por isso Jesus não é mestre como os outros, ele não funda uma escola formal: ele trabalha com educação popular, funda um movimento desenvolvido pelo ensino com grupos na rua, mas nesse grupo as mulheres estavam presentes.
Muitas mulheres seguiam e eram defendidas por Jesus?
Jesus teve no seu grupo de maior confiança mulheres como discípulas. Claro que a institucionalização posterior do movimento de Jesus privilegiou os 12 apóstolos, mas o grupo de Jesus não eram 12 homens apenas. Na própria Bíblia fala de um grupo de mais ou menos 70 pessoas, que eram os discípulos e discípulas mais próximos. Nesse grupo havia várias mulheres. Na cena de Jesus na cruz, os homens somem da cena; estão todos escondidos, com medo de que sejam os próximos a irem para a cruz. Discípulas do começo ao fim são as mulheres.
Jesus seria um líder, então, das causas de igualdade?
Eu não tenho dúvida que a causa feminista foi uma causa defendida por Jesus. Alguns interpretam, por exemplo, que o feminismo é o outro lado do machismo. Isso é completamente errado, terrível. Machismo mata! É um mal! Feminismo é um movimento de vida, não tem a ver com poder. Acham que o feminismo são as mulheres querendo tomar o poder na igreja, na sociedade. Não, feminismo é lutar por direito à dignidade e igualdade das mulheres. A minha maior inspiração para me assumir feminista tem a ver com a minha própria fé, com a forma como eu leio os Evangelhos e a vida e escolhas de Jesus de Nazaré.
A religião cristã é extremamente patriarcal. A gente tem que gritar para dentro da igreja. As igrejas são espaços machistas, como são racistas também. Então, primeiro a nossa presença precisa ser protesto dentro das instituições e estruturas cristãs, que estão contaminadas com essa leitura desigual.
Foi difícil virar pastora?
Foi uma luta. Eu fui ordenada em 2007, numa luta de mulheres da minha denominação [Batista], que tem mais de 100 anos de história no Brasil. Eu sou do grupo das primeiras mulheres ordenadas. Já ouvi muito que não poderia ser pastora
Qual argumentos usam?
Que não é bíblico. É sempre esse o argumento. Por isso que eu optei por esse lugar de estudo. Eu discuto hoje como especialista nesse texto. Nosso argumento também tem que ser, no mundo protestante evangélico, esse argumento. Não é para dialogar, é simplesmente para fechar uma postura conservadora e encerrar a conversa. Só que a Bíblia você pode usar como você quiser. Normalmente, quem usa esse argumento para dizer mulher não pode ser pastora, usa fundamentado em alguns textos bíblicos ou afirmações isoladas, como : ‘se mulher pudesse pastora, Jesus tinha chamado uma apóstola’. Hoje já existem muitos dados que mostram que Jesus chamou mulheres. Júnia é um nome conhecido e estudado: era uma apóstola, segundo Romanos 16.
A gente tem acompanhando uma onda de intolerância, muitas vezes com mote religioso. O momento atual é preocupante?
Não gosto de entrar nesse mote de “está muito pior”. Está difícil, sim. Mas eu acho que esse momento, que parece de retrocesso, é de reação. Há algo sendo construído muito forte, muito potente nas igrejas, nos movimentos sociais: são iniciativas, é o fortalecimento das mulheres, pessoas LGBT, de tanta gente que decidiu sair daquele lugar que a estrutura patriarcal, machista, racista colocou.
Isso é possível hoje?
Acho que o que desafia realmente agora, principalmente nós que estamos militando no âmbito religioso, é a instrumentalização desse discurso religioso evangélico a serviço do poder. Gosto de ser cuidadosa ao usar o termo evangélicos, ou me referir aos pentecostais ou pós-pentecostais. São movimentos muito plurais, por isso que eu não gosto da afirmação que generaliza e o culpabiliza o “povo evangélico” de ter sido responsáveis sozinhos pela eleição do presidente Jair Bolsonaro.
Os pentecostais não são responsáveis sozinhos por esse conservadorismo fundamentalista. Isso não é uma boa leitura. O que acredito é que os grupos de direita foram oportunistas e perceberam a potência que é essa massa toda cristã, evangélica e fez uso para seu projeto de poder. Enquanto os grupos de esquerda não valorizaram, não dialogaram, não ouviram, não interagiram.
No meio dessa onda conservadora, assustadora, de intolerância, de ódio em Nome de Deus, em nome da fé em nome da defesa de uma de purismo cristão, me assusta profundamente, mas ao mesmo tempo me desafia. E me faz entender que nós precisamos continuar fazendo que a gente vinha fazendo com ainda mais força. Eu costumo chamar esse sistema todo aí de dragão, é uma passagem bíblica do livro de Apocalipse que fala da luta da mulher e o dragão.
E quais os maiores desafios que a senhora vê nesse processo?
Muitas vezes, as mulheres querem que eu critique mais a ministra [da Família] Damares.E é preciso ter cuidado. Dividir as mulheres é uma arma potente na mão do machismo, e eu me recuso a fazer esse jogo. A Damares não me representa, mas não é pior do que todo esse governo. Eu não vou me armar contra outra mulher de uma forma mais violenta. Por isso acredito em formação. Precisamos fazer formação feminista em todos os setores, em todas as áreas, inclusive nas áreas consideradas progressistas, de esquerda, onde tem machismo em tudo que é movimento. As mulheres enfrentam desafios em todos os lugares, e precisamos fazer a formação de homens e mulheres nessa perspectiva feminina.
Foi para isso que formamos um grupo de mulheres que fazem leitura feminista da Bíblia: o grupo Flor de Manacá. Um grupo de mulheres da igreja comprometidas com a desconstrução das leituras patriarcais da Bíblia a fim de libertar mulheres dos discursos violentos que tem gerado violência e morte às mulheres. Foi sobre essa experiência que escrevi a minha tese de doutorado e nesse caminho de formação que pretendo continuar fazendo meu trabalho pastoral e minha militância nos espaços eclesiásticos e acadêmicos.
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