Passo importante, mas não definitivo, na garantia de direitos a quilombolas de Alcântara

Em 1983, a FAB inaugurou ali o centro de lançamentos que, para ser construído, deslocou 312 famílias

Na última quinta (19), o governo federal assinou um termo de conciliação em que o Ministério da Tecnologia e Inovação e o Comando da Aeronáutica renunciam à demanda de expansão do Centro de Lançamentos de Alcântara sobre territórios quilombolas. Um Decreto de Interesse Social e uma Portaria de Reconhecimento destravam o processo de titulação dos quilombos de Alcântara.

“Não é taça na mão, ainda precisamos de esforços para o processo complexo, lento e burocrático da demarcação, como é em todo o país. Mas politicamente temos uma vitória épica”, explicou Ronaldo Santos, Secretário Nacional de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial. “A perspectiva de ampliação da base militar, como estava previsto no último acordo com os Estados Unidos, está superada.”

Danilo Serejo, quilombola de Alcântara e cientista político, concorda que foi dado um passo importante rumo à titulação —posse definitiva das terras— mas pondera: “o histórico de descumprimento de acordos em Alcântara pelo Estado não me permite comemorar ainda. O termo de conciliação em si é juridicamente frágil, e pode falhar no que mais importa: o título”.

Danilo também afirma que o acordo se antecipa à sentença da Corte Interamericana, que está julgando as violações do Estado brasileiro em Alcântara. “A oportunidade de se ter na Corte IDH pela primeira vez um precedente jurídico de proteção da propriedade coletiva de comunidades quilombolas pode cair por terra.”

Alcântara, no Maranhão, é a cidade brasileira com a maior porcentagem de população quilombola: 84,6%. É também uma das regiões mais adequadas ao lançamento de satélites e foguetes do mundo, por sua proximidade à linha do Equador. Em 1983, a FAB (Força Aérea Brasileira) inaugurou ali o centro de lançamentos que, para ser construído, deslocou 312 famílias quilombolas compulsoriamente. Desde então, projetos de cooperação internacional tiveram a intenção de ampliar a base, e os deslocamentos.

A Constituição de 1988 assegurou a remanescentes de quilombo o direito à propriedade de terras. A convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre Povos Indígenas e Tribais determina consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais sobre medidas que afetem seus territórios e modos de vida. Ainda assim, em 2002, o governo Fernando Henrique Cardoso negociou com os EUA uma proposta de ampliação, rejeitada pelo Congresso, que viu risco à soberania nacional. Em 2004, o governo Lula firmou parceria com a Ucrânia na criação de uma empresa binacional para explorar o centro, revogada em 2015. O governo Temer retomou as negociações com os EUA, que resultaram em novo acordo firmado pelo governo Bolsonaro em 2019.

Movimentos como MABE, MOMTRA, STTR e ATEQUILA denunciam as violações constantemente, além de terem articulado com o Senado norte-americano a determinação de que não se destinassem recursos à remoção das comunidades. Em julho de 2024, respondendo aos movimentos, a OIT recomendou que o Brasil titulasse territórios, assim como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já havia feito em 2020. Em audiência pública da Corte IDH, em 2023, o Estado brasileiro reconheceu a violação de direitos das comunidades quilombolas de Alcântara.


Bianca Santana – Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...