Pega no meu power | Os homens que odiavam crianças pretas

Se não fosse meu filho. O senhor ia fazer o que? Por Sueli Feliziani

 

Duas da tarde. Saio de casa com o filhotão, empolgadíssimo com o livro novo que acabara de ganhar, para um almoço na casa de minha mãe. Ele a alguns passos de mim, pouco a frente, eu distraída, guardando as chaves e procurando um cigarro. Nenhum dos dois viu o que se passava atrás de nós.

 

– Hey, você. Disse ele, dirigindo-se a mim.

– Eu? Perguntei.

-Sim. Você.

Voltei alguns passos atrás. Assustada ao ver um gigante com uma arma na mão. Saído do inferno, ou da viatura parada a poucos metros da porta da minha casa.

 

-Esse moleque. É seu? É seu filho?

-É. É meu filho.

– Ah, tá. Segue!

-Tá.. Mas e se não fosse?

-Se não fosse o que, dona?

-Se não fosse meu filho. O senhor ia fazer o quê?

-Ia abordar.

-Abordar uma criança de 12 anos com um livro na mão?

-Olha, tem criança de dez, seis anos roubando, matando…

-Uma criança matar com um livro na mão????

-A senhora não vê televisão não?

Pensei comigo que não, mas da última vez que havia ligado a tv a estatística dizia que policiais matavam 48 negros em serviço por mês, mas resolvi me calar.

-Não, não vejo.

-E o senhor também não devia. Deveria era tomar cuidado com o filho dos outros.

A prisão de um mundo que não discute seu racismo ideológico é imposta sobre o afrodescendente todos os dias, e se manifesta em toda e qualquer relação que ele estabelecerá ao longo da vida. Mas esta se impõe de modo ainda pior numa sociedade cuja construção do racismo se deu de forma insidiosa, por meio de um mecanismo de assimilação da violência como parte de um suposto processo natural da convivência entre negros e brancos através de mitos culturais úteis.

Tá, mas o que isso tem a ver com o meu filho ser enquadrado por estar andando na rua às duas da tarde com um livro na mão?

No Brasil, quando se nasce preto. Nasce-se com 350 anos de história na cor da pele. Do bom dia ao padeiro. Ao sair de casa para chegar ao ponto de ônibus. Toda interação que um negro terá que performar será necessariamente mediada pelo preconceito de raça e classe, pelo imaginário social estereotipado, pelos mitos raciais distorcidos pela branquitude hegemônica e pela violência que todos esses estigmas causam nas relações humanas, sejam elas afetivas, institucionais, sociais, acadêmicas, ou de qualquer outra natureza. Absurdos, como esse que narro agora, acontecem todos os dias num mundo historicamente racista.

E não só em terra brasilis, é claro, mas o tratamento que nós damos a isso é bem diferente por aqui. Talvez por conta do fato de que leis explícitas de segregação racial tiveram sua extinção tardia em muitos outros países, e estes nos deixaram bem marcados suas histórias de luta, seus heróis e seus mártires, que são muito conhecidos e queridos por aqui.

O Apartheid, a lei estrita de segregação racial sulafricana, termina oficialmente em 1994, todo e qualquer brasileiro conhece ou já ouviu falar de Nelson Mandela. Após vinte anos de riots, os EUA nos deixam a história do voto negro em 1965, também Malcom X, Marthin Luther King, Angela Davis, os Panteras Negras. Até hoje, manifestantes do mundo todo exigem a libertação de Mumia Abu-Jamal, preso em 1981, acusado injustamente de matar um policial num protesto. Agora recentemente a morte de Michael Brown mobilizou direta e indiretamente milhares de pessoas, por ininterruptos 15 dias, em Ferguson, no Missouri. O mesmo ocorreu no caso de Renisha McBride, em 2013: a pressão popular levou ao processo do homem branco que atirou nela a queima roupa por bater em sua porta para pedir ajuda após um acidente, sob a alegação de legítima defesa.

Perto da repercussão que tem aqui esses fatos e figuras, me admiro que tenhamos conseguido organizar a II Marcha [inter] Nacional Contra o Genocídio Negro com presença massiva só esse ano. Ela veio com tudo e junto com o sucesso do ato Paixão de Cláudia , ocorrido em abril, e contou com 50mil pessoas em todo o país.

Aí é que tenho a minha primeira crítica e meu primeiro ponto a ser levantado: Eu esperava mais. Não me entendam mal, eu não acho o número pouco expressivo, muito pelo contrário, uma marcha auto-organizada, de participação exclusiva negra, a ser realizada num dia de semana, em horário próximo ao comercial com um quórum dessa magnitude é para ser comemorada e glorificada de pé. Não é esse meu ponto. O meu ponto é: Negros são 62% de uma população de 200 milhões de pessoas. E uma parcela muito grande dessa população não se sente movida para participar de uma ação de tal natureza. Essa é uma das minhas questões. Porque o negro brasileiro não empatiza quando um dos seus é vítima de violência policial, ou de descaso do sistema de saúde, ou morre vítima da violência institucional [na mão de seguranças, por exemplo], ou sofre racismo explícito?

Outra das minhas questões, que está relacionada a essa primeira por ter a ver com as razões que nos motivam a ter empatia, e também está relacionada ao que o policial me perguntou: e quanto ao quase silêncio da mídia impressa, televisiva e de rádio sobre a marcha e a questão de raça, exatamente ao mesmo tempo em que se alardeava o caso Michael Brown em todas as redes nacionais, e só se falava em Ferguson nas redes sociais.

Dá pra se pensar numa memória de peixe feliz a ser atribuída ao negro brasileiro. Ou alguma deficiência mnemônica induzida por conta da estrutura de mídia tendenciosa como a que possuímos ou até alguma teoria da conspiração incluindo iluminatis e seitas nazistas inseridas nos meios de comunicação. Mas acho que o problema é ainda mais sério, e de mais difícil resolução.

 

Representação e História

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A senzala mental do estereótipo é uma criação racista, de manutenção branca, surgida sempre nos processos pós-abolição, que se perpetua por meio da redução, da mitificação, e da exotificação do sujeito negro em seus papéis na sociedade. A diferença da perpetuação ou não desses projetos no imaginário e na identidade do negro enquanto sujeito está diretamente ligado ao tipo de projeto social aplicado no processo pós-abolição.

Quantos e quais são os líderes negros abolicionistas que vocês conseguem lembrar de suas aulas de História do colégio? Quantos de nós conseguimos citas sem pensar quatro heróis negros quilombolas, ou da resistência antiescravidão, excetuando-se Zumbi dos Palmares?

Nosso projeto de abolição, ao contrário dos projetos que impuseram nos países segregacionistas, foi assimilacionista. Nós não possuímos registro da História Preta. A obrigatoriedade do ensino de cultura e história afro nas escolas do país só foi implementada em 2003. Até então, nossa história enquanto povo negro era a história branca emprestada dos livros. Nossos heróis estão guardados nos registros como foras da lei, não estão nos hinos, nem nos monumentos.

O processo de segregação obriga a luta negra pela liberdade e por direitos como parte da sobrevivência, o projeto assimilacionista obriga o negro a submeter-se e a aprender que a obediência é a sobrevivência no mundo sem lei, direito ou história. Lutar aqui é sinônimo de morte para o assimilado. Mas assimilar-se é a morte da liberdade. Reaja.

Na tv o bandido é negro. Nos livros o herói é branco. Na rua o suspeito é negro. Na lei a autoridade é branca. Em quem seus filhos vão se espelhar? Reaja!

Nós pretos já nascemos pobres, porém já nascemos livres! Somos filhos de Tereza de Benguela, de Palmares, de Luiza Mahin, irmã de Luís Gama. Me recuso a deixar que alguém me diga onde é o meu lugar. Não se ajuste. Reaja!

De quantos Amarildos, Douglas, DGs, Claudias, Rafaéis, e Gabrieis ainda vamos precisar?

Hoje, como nunca antes, é preciso escolher reagir para estar vivo.

 

Nossos filhos agradecem!

 

Ilustração: Emilia Santos.

 

Fonte: Revistageni

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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