Moradora de Perus, na zona noroeste de São Paulo, Priscila Santos, 29, conhecida como Priscila Diva, saiu de casa sem celular e documentos no fim de março do ano passado. Ficou cinco dias desaparecida e, depois de uma campanha de busca, o corpo dela foi encontrado em uma represa em Mairiporã, na Grande São Paulo.
Priscila Diva foi uma das 131 pessoas trans e travestis assassinadas no Brasil em 2022 —o número faz parte do “Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras”, da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Segundo o relatório, o Brasil é o país com mais mortes de pessoas trans e travestis no mundo pelo 14º ano consecutivo. México e Estados Unidos aparecem em segundo e terceiro lugares, respectivamente.
O dossiê, divulgado hoje e entregue ao ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, indica que mulheres trans e travestis têm até 38 vezes mais chance de serem assassinadas em relação aos homens trans e às pessoas não-binárias.
- Das 131 mortes em 2022, 130 referem-se a mulheres trans e travestis e uma a homem trans.
- A pessoa mais jovem assassinada tinha apenas 15 anos.
- Quase 90% das vítimas tinham de 15 a 40 anos.
Em números absolutos, o total de mortes em 2022 foi pouco menor do que em 2021 (140). Para a secretária de Articulação Política da Antra, Bruna Benevides, no entanto, não é possível falar em queda —pois há subnotificação dos casos e a diferença é pequena.
Para combater a violência contra pessoas trans, ela diz que é necessária a criação de políticas públicas para além das questões ligadas ao sistema de justiça ou segurança pública.
Precisamos de destinação de recursos públicos e uma intensa atualização e formação com qualificação contínua e periódica para os agentes do Estado. Em todas as suas pastas e âmbitos.”
BRUNA BENEVIDES, ANTRA
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda. “Estamos falando de pessoas trans que precisam de política de educação, de saúde, de assistência social, de trabalho. Pessoas que precisam de acesso aos direitos básicos.”
Tanto a subnotificação quanto obstáculos a investigações se originam da percepção de que há grupos cujas vidas são mais importantes que as de LGBTQIA+ e cujas mortes merecem maior enfrentamento.”
DENNIS PACHECO, FÓRUM DE SEGURANÇA
Dados de 80 países reunidos pelo projeto internacional Trans Murder Monitoring (monitoramento de assassinatos de pessoas trans, em tradução livre) mostram que das 4.639 mortes registradas entre 2008 e setembro de 2022:
- 1.741 ocorreram no Brasil (37,5% do total);
- 649 no México (14%);
- 375 nos Estados Unidos (8%).
O levantamento indica que 68% dos casos acontecem na América Latina e Caribe.
O perfil das vítimas
Segundo o dossiê da Antra, o perfil das vítimas no Brasil é o mesmo dos outros anos: mulheres trans e travestis negras e empobrecidas. A prostituição é a fonte de renda mais frequente.
- 76% das vítimas eram negras;
- 24% brancas.
Nos últimos seis anos, desde que a associação passou a ser responsável pelo levantamento anual das mortes —que antes era feito apenas pelo GGB (Grupo Gay da Bahia)— foram ao menos 912 assassinatos de pessoas trans no Brasil. A média anual é de 121 casos.
Pernambuco foi o estado que mais registrou assassinatos, com 13 casos, seguido por São Paulo (11), Ceará (11), Minas Gerais (9), Rio de Janeiro (8) e Amazonas (8).
A maior parte dos crimes (61%) aconteceu em lugares públicos, principalmente em ruas desertas e de noite.
- 41% das vítimas foram mortas a tiros;
- 24% facadas;
- 16% espancamentos/estrangulamentos.
A Antra destaca a dificuldade de obter informações sobre os suspeitos —entre os 131 assassinatos do ano passado, houve 32 notícias sobre identificação ou prisão de suspeitos, e todos eram homens cisgêneros. Para a entidade, ainda não é possível traçar um perfil dos suspeitos.
Apesar da tragédia, o fato de termos um relatório como esse aponta para prosperidade de pensar como é possível superar essa tragédia. Ter o conhecimento, ter os dados, ter a possibilidade de olhar de frente para esse problema, nos traz perspectiva de mudança, de transformação.”
SILVIO ALMEIDA, MINISTRO DOS DIREITOS HUMANOS
A família de Priscila, que morava na capital paulista, continua abalada e, por isso, não quis falar com a reportagem. De acordo com os parentes, o crime não foi solucionado —dez meses depois. A Secretaria Estadual da Segurança Pública informou que laudos periciais indicaram overdose e que a polícia “segue trabalhando para o esclarecimento dos fatos”.
Violações de direitos humanos e suicídios
O dossiê mostra ainda que houve ao menos 142 violações de direitos humanos com motivação de transfobia no Brasil em 2022 —são casos de discussões ou agressões. A maior parte dos casos é referente ao uso do banheiro para pessoas trans, em escolas, shoppings, aeroportos, mercados, academias, entre outros.
Os suicídios também foram mapeados —foram ao menos 20 casos no mesmo ano.
Uma pessoa LGBTI+ é morta a cada 34h, diz outro levantamento
Outro estudo —publicado na semana passada pelo GGB— mostra que 242 pessoas LGBTI+ foram assassinadas no Brasil em 2022, além de 14 pessoas mortas por suicídio. A média é de uma morte a cada 34 horas.
Desse total, segundo o GGB, 111 foram de pessoas trans (110 de mulheres trans e travestis e um de homem trans).
A divergência dos dados com a Antra está na forma como os levantamentos são feitos. O GGB leva em consideração as publicações de veículos de imprensa. Já o dossiê da Antra analisa as reportagens e dados governamentais, de processos judiciais e de segurança pública —além de fontes secundárias, como instituições de direitos humanos, redes sociais e relatos testemunhais.
Apesar de homens gays serem mais vítimas de mortes violentas —em números absolutos com 134 mortes—, a população trans tem 19% mais de riscos de crimes letais do que a população gay, conforme o GGB.
Data
Os dossiês fazem parte de ações voltadas ao Dia Nacional da Visibilidade Trans, 29 de janeiro. A data marca a luta pelos direitos da população trans desde 1992, quando aconteceu a primeira reunião da Astral, primeira associação trans do país.
Na apresentação do relatório da Antra ao ministro Silvio Almeida, a presidente da entidade destacou que espera uma mudança nas políticas públicas voltadas a pessoas trans e travestis. “Queria pensar da simbologia de estar voltando nesse espaço”, disse Keila Simpson. “[Nos últimos anos] Resistimos e recuamos, não por medo. Porque queríamos desenhar estratégias novas.”