Alexey Dodsworth conseguiu alimentar 11 mil moradores de rua com campanha iniciada no Facebook
Por Rosane Queiroz, Da Folha de S.Paulo
Ele pagou mais de 11 mil refeições para moradores de rua por uma semana, durante a quarentena. Cada refeição custou R$ 1 no restaurante popular Bom Prato Lapa. Cada centavo foi arrecadado em uma campanha despretensiosa iniciada com um post nas redes sociais que resultou em R$ 17 mil captados.
O escritor e doutor em filosofia Alexey Dodsworth Magnavita de Carvalho, baiano de 48 anos, radicado em São Paulo, faz aqui um balanço da mobilização — que ganhou contornos de fábula — e da burocracia que complicou a operação.
“Na manhã de 30 de março, fui ao Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo). Eu me curei de um câncer em 2015, mas faço um monitoramento uma vez ao ano.
Como estava em jejum, depois do exame procurei fui à padaria, quando vi uma mulher muito magra, negra, de olhos arregalados. ‘Me dá alguma coisa para comer’, ela falou. Comprei um misto quente e um suco de uva por R$ 12.
A cena seria triste e banal não fosse por um detalhe: ela comeu com um desespero que me lembrou filmes de zumbi. Perguntei há quanto tempo ela não comia. Disse que desde as 11h do dia anterior.
Falei para ela que havia um Bom Prato na Lapa, ali perto, onde poderia almoçar por R$ 1. Ela me disse que nem R$ 1 de esmola estava conseguindo, por conta do esvaziamento das ruas.
Eu não tinha dinheiro vivo, na hora, mas uma senhora doou a ela R$ 20. Com o valor que gastei no misto, pensei que poderia pagar café da manhã, almoço e jantar para cinco moradores de rua.
Ao chegar em casa, liguei para uma amiga e contei o que havia acontecido. Propus a ela pagarmos 150 almoços e 150 jantares para moradores no Bom Prato da Lapa. Ela topou rachar os R$ 300.
Publiquei o plano em um post no Facebook, convocando quem mais quisesse ajudar, com meus dados bancários e e-mail.
Ao olhar o saldo da minha conta, fiquei pasmo. As pessoas haviam doado: 5.000 refeições. Minha ideia era conseguir uns 500, 1.000 almoços.
Ao olhar o extrato, percebi doações de todos os valores, de gente que eu jamais conheci. O depósito menor era de R$ 6. Havia uma doação de R$ 1 mil. Tinha transferência da Itália, da Grécia. Uma senhora irlandesa me escreveu dizendo que por lá a situação estava melhor do que aqui. Ela mandou 200 euros.
Pensei na possibilidade de distribuir esses R$ 5 mil em restaurantes Bom Prato em bairros diferentes. Aí, começou um processo complexo, tanto com o pagamento das refeições quanto na prestação de contas.
Conforme me contou o administrador do Bom Prato Lapa, o preço de custo de cada marmita é de R$ 6,70 (isso envolve comida, marmita, talheres e pagamento dos funcionários).
O governo do Estado financia R$ 5,70 com o dinheiro de nossos impostos. Ou seja, o Bom Prato é meu, é seu, é nosso. Com o valor simbólico de R$ 1, eles pagam os custos básicos, funcionários.
Com a ameaça do contágio do coronavírus, o Bom Prato passou a fornecer marmitas. A pessoa vai, pega e leva consigo. E a comida é ótima. Eu comi. Tinha arroz, feijão, uma coxa de frango e uma laranja de sobremesa.
Vale dizer que pagar pela refeição tem um impacto psicológico importante para os moradores de rua.
O Bom Prato Lapa aceitou que eu pagasse antecipadamente. O funcionário teve que ficar marcando no papel cada almoço, até chegar aos R$1.100 que doamos no primeiro dia.
Fiquei olhando a fila e pude perceber que ter a refeição paga era um alívio para as pessoas. Se não precisam pagar o de hoje, podem pagar outro dia.
As doações não pararam de aumentar, chegando a R$ 10 mil. Pensei de comprar mil marmitas por dia para distribuir em outros lugares. Mas não era possível. Soube, então, que cada Bom Prato tem a capacidade máxima de fornecer 1.600 marmitas/dia, no almoço.
Eles não têm como produzir outras mil. Aceitaram que eu transferisse diariamente R$ 1.400 para a conta da instituição –o que eu faria até chegar a quantidade de doações feitas.
Fui atualizando o post das doações e postando novos comprovantes. Propus, então, que as doações fossem feitas para a Fundação Comunidade da Graça, instituição gestora do Bom Prato Lapa e Guarulhos. O almoço ficou garantido por mais uns cinco, seis dias.
Uma das doações que mais me comoveram veio de uma uma garota de 12 anos. Ela escreveu: “Eu queria ajudar com mais, mas ganho uma mesada de R$ 50 pro lanche da escola, que nem vai ter neste mês. Vou lanchar em casa. Desculpe dar tão pouco, fico até com vergonha”.
Não sou católico nem religioso, mas estudei em colégio jesuíta. Sua doação me fez lembrar a parábola da viúva pobre. Aquela que doa duas moedas aos pobres e Jesus diz algo como “ela doou mais que todos os outros”, porque deu tudo o que tinha.
Sem querer diminuir a doação generosa que muita gente fez —a maior delas de R$ 1.500– a colaboração de quem dá tudo o que tem me comoveu. Eu respondi à menina: ‘Você possibilitou que 50 pessoas comam’.
O gerente da livraria Martins Fontes também entrou em contato comigo, avisando que, a cada livro da Editora WMF Martins Fontes vendido pelo site ou televendas, duas refeições seriam viabilizadas para o Bom Prato Lapa.
Cada 700 livros vendidos significaram um dia inteiro de marmitas pagas. Tudo aconteceu em uma semana. O Bom Prato Lapa recebeu, pela minha conta R$ 3.900, além de R$ 7.756 na conta da Fundação Comunidade da Graça. Isso viabilizou ao todo, 11.656 refeições.
Até que recebi um telefonema do gestor do restaurante: ‘Deu problema’. Reclamaram que nossas doações estavam privilegiando aquela unidade e que isso não seria justo com os outros cem restaurantes da mesma rede.
Quem é o sujeito do “reclamaram”? Não sei nem quero saber. Na cabeça dos reclamantes, é injusto que apenas uma comunidade não pague para almoçar, quando há tantas outras que precisem pagar.
Na estranha mente, é injusto que um pequeno grupo tenha seu sofrimento aliviado. Melhor que todo mundo sofra igual. Que ironia! A gestão, por fim, me disse: ‘A Secretaria pediu para não aceitarmos mais ajuda’. Pediu que parássemos as transferências.
Nunca foi minha intenção acabar com a fome no planeta. Queria ajudar, usando meu poder de alcance social.
Ao longo desses dias, recebi mensagens de gente que eu nunca vi. Alguns queriam ajudar, e ajudaram muito. Mas houve quem só queria criticar. Algumas frases: ‘Mas você só vai doar pro Bom Prato Lapa? Você não vai ajudar a comunidade de sua terra natal?’, ‘E a Itália?’.
Outra observação terrível veio de uma pessoa supostamente de esquerda – e eu sou de esquerda! Me disse: ‘Você está dando o peixe…’ Como diabos vamos ensinar a pescar em tempos de isolamento social? Outros me acusaram de estar fazendo campanha para o [governador de São Paulo, João] Doria.
Foi uma ação despretensiosa desligada de qualquer movimento político partidário. Eu realmente estava me lixando para o fato de que a gestão do Bom Prato é do PSDB, porque, afinal, quem tem fome tem pressa.
Minhas preferências partidárias neste momento catastrófico ficaram em segundo plano.
Tomei mais um susto quando as doações chegaram a algo em torno de R$ 17 mil. Foi bonito de ver, milhares de pessoas almoçaram.
Por fim, o próprio gestor do Bom Prato Lapa me sugeriu uma solução. Falou para eu destinar o restante do valor para as cestas básicas que estão sendo montadas e distribuídas pelo projeto Onda Solidária, e o Instituto Extreme Impact, que atuam no Centro. Ele me disse que com R$ 50 se monta uma boa cesta.
A melhor maneira de seguir ajudando é colaborar com membros da sociedade civil que estejam organizando cestas básicas.
Tenho uma tia freira que me disse que ‘é muito difícil fazer o bem’, quando comentei que estava afim de ajudar uma parte da população de rua.
A esta frase de minha tia, junte o antigo dito popular ‘muito ajuda quem não atrapalha’. Ao ajudar, você se expõe. É fácil criticar a ideia do outro, de braços cruzados. Valeu a pena. Só lamento não fazer mais, até pela burocracia que complica as coisas.”