Perdi tudo ao me posicionar contra o racismo, diz ginasta Angelo Assumpção

A ginástica é a vida e a mágoa de Angelo Assumpção, 24. O atleta defendeu o Pinheiros, de São Paulo, por 16 anos, até o fim de 2019, quando acabou demitido. De acordo com ele, após denunciar injúrias raciais sofridas dentro do clube.

Uma reportagem da Globo também mostrou que uma série de denúncias de assédio moral identificadas na ginástica da instituição, de 2013 a 2019, não levaram a qualquer punição.

O clube afirma que o contrato de Angelo foi rescindido cerca de um mês antes da data prevista para o seu término por causa de atos de indisciplina, como atrasos e insubordinação com a equipe técnica.

Desempregado desde então, o atleta se sente abandonado. “De um dia para o outro, por se posicionar, você perde tudo. Todo mundo está empregado e eu não! Eu sou culpado por me posicionar sobre o que me machuca? Não dá para entender”, ele afirma à Folha.

Não foi a primeira vez que um caso de racismo o envolvendo ganhou repercussão. Em 2015, um vídeo nas redes sociais mostrou os então companheiros de seleção brasileira Arthur Nory, Felipe Arakawa e Henrique Flores fazendo supostas brincadeiras com conteúdo racista ao lado de Angelo.
Segundo ele, que era um grande amigo de Nory antes do caso, esse episódio marcou profundamente sua vida e transformou sua trajetória. “Quantas histórias de negros foram apagadas dentro do esporte?”, questiona.

Angelo teve depressão, lesões e temporadas ruins após o vídeo. Também deixou de ser convocado para representar a seleção brasileira. No ano passado, em recuperação, ajudou o Pinheiros a ser hexacampeão brasileiro na ginástica, mas pena para manter viva a carreira na modalidade desde sua demissão.

Familiares e amigos criaram uma vaquinha virtual para ajudar a bancar despesas básicas do atleta. Até esta segunda-feira (7), já haviam sido arrecadados quase R$ 25 mil, superando a meta inicial de R$ 15 mil.

Na última semana, Nory falou em detalhes sobre o caso de 2015 pela primeira vez, numa entrevista à Folha. Afirmou que cometeu um erro inaceitável e voltou a se desculpar. “Quero dizer para ele [Angelo] que estou disposto e aberto a aprender com ele, e a ouvir.”

Angelo pediu que não fossem incluídas perguntas citando o nome de Nory nesta entrevista.

Como está sua carreira hoje? Minha vida está muito parada. Estou sem clube desde novembro, quando rescindiram meu contrato. Faço o possível em casa, mas não tenho ferramentas. Sem salário. Tem muita coisa acontecendo, tento manter a saúde mental. Nenhum clube me procurou. Tentei entrar em contato com alguns e não tive muito sucesso. O meio da ginástica é muito pequeno. Eu quero voltar a treinar e representar meu país ou outra bandeira.

Você pensa em representar outro país? Eu posso me naturalizar. Há alguns países mais fáceis, como Portugal, por exemplo. Há uma burocracia grande, mas é algo possível.

O que explica esse vácuo no qual se encontra? A gente está muito aquém na questão racial. Precisa ser mais unido e ter olhar mais empático com quem é vítima dessa situação. Eu vejo um abandono quando o assunto é racismo. O abandono não é do atleta, eu não abandonei o esporte, mas sim de uma sociedade que não dá respaldo ao atleta.

Qual é a sua relação e o seu sentimento com a ginástica hoje, após tudo que aconteceu? Acredito que o esporte é uma ferramenta de transformação e educação. Cresci muito no esporte, conheci pessoas, tive outra perspectiva de vida. Não posso negar que vivi coisas maravilhosas, dentro da seleção e do Pinheiros. Mas a sociedade não tem o letramento para lidar com o racismo. Ele é estrutural, está entranhado. De um dia para o outro, por se posicionar, você perde tudo. Todo mundo está empregado e eu não! Eu sou culpado por me posicionar sobre o que me machuca? Não dá para entender. A gente fica muito triste, porque não foi um caso isolado. Não foi a primeira vez. Eu não olho muito ginástica. Sinto muita saudade, não minto. Mas eu me sinto muito magoado.

Entre as justificativas dadas pelo Pinheiros para o rompimento do seu contrato está a de que você foi indisciplinado e desrespeitou hierarquia, levando denúncias diretamente para a diretoria do clube. Isso aconteceu? Eu fui contar os fatos que aconteciam comigo dentro do clube. Eu tentei dialogar dentro do ginásio, na comissão técnica, com atletas, e as coisas persistiram desde 2015. Então, depois do Campeonato Brasileiro, para não atrapalhar o desempenho de ninguém, eu levei para a diretoria.

Se não surgisse o vídeo de 2015, até quando você acha que seria possível deixar de expor casos semelhantes pelo sonho de alcançar resultados na ginástica? Há um problema: é sempre nós que temos de lidar com a situação. O opressor faz e nós temos de lidar com a situação. Estar em um ambiente elitista [como o do clube Pinheiros] traz dificuldade de você se sentir inserido, e o nosso sonho está em jogo. Você tem a ferramenta para chegar ao sonho e se submete àquilo. Por muito tempo eu fui o único negro no Pinheiros e na seleção masculina. É sempre assim: você é o único, o cara do mimimi, do vitimismo, e ainda tem de dar resultado. Muitas vezes a gente pensa em desistir. Ainda mais na ginástica, elitista e que não tem muita gente negra. A gente conta nos dedos das mãos. Temos a Daiane dos Santos, mas e os outros, quantas histórias de negros foram apagadas dentro do esporte?

Quando o vídeo repercutiu, o que você imaginou que aconteceria? Eu tomei um baque, fiquei um pouco assustado. Não queria que aquilo acontecesse. Achava, e tenho certeza hoje, que aquilo poderia mudar a minha vida. Lidar com isso publicamente é complicado. E ainda logo depois que você ganha uma medalha [da Copa do Mundo de Ginástica] que pode mudar a sua vida. Machucou, passei dois anos difíceis. Tive depressão, passei por psicólogo. As pessoas perguntam se foi racismo. Tinha um vídeo, eu não deveria ter que nomear.

O que você diz quando perguntam se foi racismo? Aquilo é racismo, não é brincadeira. As pessoas não têm vergonha de cometer racismo. Elas têm vergonha de serem apanhadas. E se você toma uma atitude? “Quer ferrar a vida do cara”, “vai acabar com a carreira do cara?”, a gente escuta isso. E a minha? O racismo está acabando com a minha vida. E quem está preocupado?

Na sua opinião, por que nos EUA o esporte convive mais com manifestações políticas e de igualdade racial que no Brasil? Aqui os atletas têm muito medo de perder as coisas. Quanto estamos dispostos a perder para combater o racismo? A gente precisa ter consciência e orgulho de quem somos. Todo dia está morrendo um George Floyd no nosso país. Todo mundo apoia os Estados Unidos e esquece dos nossos. Eu não consigo achar normal isso, a gente sempre fica olhando para os Estados Unidos e não faz o serviço de casa, com nossos atletas, com nossa sociedade. Eu não quero ganhar likes, não quero ganhar seguidores. Eu quero trabalhar.

Você relatou que seu cabelo já gerou críticas por supostamente atrapalhar seu desempenho. Qual a importância dele para você? Sempre tem retaliações quando queremos colocar a nossa cultura no lugar que ela pertence. Colocou trança? “Ah, isso não é coisa de atleta.” Toda vez que a gente quer enaltecer nossa cultura, sofre boicote. Mas se uma pessoa branca coloca dreads, é bonito. Se o negro coloca, é marginal, usuário de drogas. Foi um momento de transformação deixar o cabelo crescer e deixar a trança. É preciso ter o letramento da cultura negra, para toda a sociedade.

Você já pensou em deixar o esporte e construir uma carreira no ativismo? Gostaria de alguma maneira, ainda não sei ao certo, de fazer as duas coisas. O atleta não é só atleta, ele é um porta-voz. A gente tem uma carta branca porque as pessoas admiram e seguem os atletas. A gente se posiciona um pouco nas redes sociais, dentro das competições, pedindo mudança. Eu tentei levar o diálogo no ginásio e não consegui. O papel do atleta não é só dar resultado no ginásio.

Você acha que devemos cobrar mais posicionamento dos atletas? Acho que não temos de tratar como obrigação somente do negro se posicionar. Mas o quanto estamos dispostos a perder para mudar o esporte, a sociedade? Eu deixo essa pergunta.

 

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