Perturbadores do sono do mundo

Pra que serve mesmo a literatura? Vivemos num tempo repleto de relativismo, falsas verdades. De ideias fora do lugar. Ideias desafiadas pelo romance

O PROFESSOR JOEL RUFINO dos Santos, autor de “Quem ama literatura não estuda literatura – Ensaios indisciplinados”

A filosofia se debruçou sobre conceitos complexos como a verdade, a realidade, a felicidade, a vida e a morte. O Iluminismo prometeu liberdade, igualdade e fraternidade. Com a revolução industrial, os positivistas nutriam a felicidade. Receita: o desenvolvimento da ciência. A ciência e a técnica levariam o homem a uma nova dimensão. Bem, o que tem tudo isso a ver com literatura? Ou a arte do romance? Pra que serve mesmo a literatura? Para entreter a morte, postergá-la por “Mil e uma noites”, isto é, por noites infinitas.

Como estudar, afinal, a literatura? Essas questões e muitas outras são colocadas com propriedade no livro “Quem ama literatura não estuda literatura – Ensaios indisciplinados”, do professor Joel Rufino dos Santos. Indisciplinados? Pelo contrário. Rufino foge aos famosos cânones literários e das confusas teorias literárias (principalmente da chamada escola dos Formalistas Russos) para descortinar uma série de reflexões sobre o ato da circulação e leitura do romance. E chega a conclusões das mais interessantes.

A literatura perturba o sono. Assim como outros campos do saber, segundo o professor. A teoria freudiana, por exemplo, perturbou para sempre a ideia de amor e, consequentemente, da literatura para fora do senso comum. Definições de literatura? Ora, são muitas. A arte de provocar com palavras, o gozo de fingir que se sofre. Prazer e morte em tramas tecidas e reinterpretadas por anos sem fim.

Joel Rufino dos Santos, professor aposentado da Faculdade de Letras da UFRJ e autor de mais de 50 livros, defende uma infinidade de ideias sobre o romance na sua nova obra. Detona formalistas e estruturalistas com elegância, sem, no entanto, desestruturá-los completamente. Coloca a literatura numa relação constante com outros saberes. A incessante busca do conhecimento. Do homem, através do romance, da sua tênue e frágil existência. Do homem, solitário, na sua difícil jornada do herói. Como no romance “Macunaíma”, de Mário de Andrade, citado por Rufino. “As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões, bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina. O herói aprendeu calado e de vez em quando estremecia. Foi quando resolveu brincar com aquela coisa poderosa, a Máquina”.

A literatura, para Rufino, desempenha o mesmo papel que a filosofia – desestabiliza a ciência, ao mesmo tempo que se apresenta como outro conhecimento dos homens. “A literatura vive lembrando à ciência que o homem, antes de ser inteligência do mundo e senhor das máquinas, é desejo insatisfeito. Como descobriu Macunaíma ao chegar a São Paulo. Para Joel Rufino, a religião, a filosofia e a literatura têm em comum a prática contestatória da ciência.

Na verdade, ao se impor, assumindo o lugar do conhecimento, a ciência se transformou num instrumento de dominação. “O discurso científico em todos os campos, absolveu como normais, equilibrados, realísticos, os atos da vida a favor da ordem do mundo; e colocou como anormais, desequilibrados, utópicos, os atos da vida que contrariam a ordem do mundo”. No caso, a literatura.

Dialética

Mesmo ao analisar a literatura através de Marx, Freud e Darwin, Rufino chega a conclusões das mais interessantes. E vai debulhando o método ou métodos e os princípios ou não-princípios do conhecimento. “Os gregos chamavam dialética à arte de averiguar a verdade por meio da discussão, cada oponente buscando desentranhar as contradições implícitas na argumentação do outro”. Marx, Freud e Darwin foram os maiores influenciadores da literatura. Cada um ao seu modo. Só para citar alguns escritores marxistas: Berttold Brecht, Pablo Neruda, José Saramago e Jorge Amado, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz. Todos contra a mais valia.

Mas nem só de marxistas vive a literatura. Em um capítulo do seu livro, o professor Rufino analisa nossa “flor de obsessão” ou nosso maior reacionário, Nelson Rodrigues com a sua peça “Anjo Negro”.

– Nelson deu uma explicação singela sobre a peça: criou Ismael para mostrar que no Brasil não gostamos de negros, os próprios negros não gostam de si. Daí ter criado Ismael. Ocorre que sem esse primitivo Virginia não goza, não ama. A constatação é desagradável, nas palavras do próprio Nelson, impiedoso, mas não hipócrita. Talvez a única valia política das obras de arte seja revelar o que está por detrás das aparências, e os criadores reacionários, como Nelson Rodrigues, são corajosos ao fazer essas revelações.

Para explicar melhor “Anjo Negro”, Rufino lança mão das ideias de Freud. Ora, Freud, Darwin, Marx e Einstein foram perturbadores do sono do mundo. E Freud foi de longe o que mais alterou a nossa maneira de ver as relações amorosas, objeto essencial da literatura com os conceitos consciente/inconsciente, ego/id. “É no plano do inconsciente, quase sempre, que se passam as peças, contos e romances de Nelson”.

Outros campos

Tomando como parâmetro a psicanálise, a sociologia, a antropologia, a filosofia, Rufino analisa a criação de vários escritores. Coloca o romance no centro de todos os desejos. Dostoiéviski, por exemplo, é dos mais emblemáticos. Para Freud, as chaves da obra do autor de “Crime e Castigo” seriam o parricídio, o sentimento de castração e o complexo de Édipo. Para Rufino, o método criado há cem anos por Sigmund Freud se tornou essencial à analise literária – embora ele não exclua outros.

Sem o chamado “biografismo”, Rufino vai tecendo suas análises de textos e autores de forma lúcida. “Quem ama literatura não estuda literatura” não é somente para professores da área. Pelo contrário. O livro nos ensina a nos debruçarmos sobre um romance com maior profissionalismo. Nos torna, assim, melhores leitores. Afinal, a obra é aberta. E cada leitor tem seus critérios e seus horizontes de leitura. Sem “ismos”, o professor Rufino analisa conceitos complexos como conteúdo e forma. Reflete sobre “Angústia” de nosso Graciliano Ramos.

– Vocábulos, pontuação, recorrência e pronomes são elementos formais que, combinados de maneira original, dizem o que Graciliano queria dizer quando se sentou para escrever “Angústia”. São, numa palavra, a forma do romance. Agora bem, esta é a forma particular do romance “Angústia”, mas se pode falar em pelo menos outras quatro: a forma do gênero (romance), a pessoal do escritor (que se mostra mais claramente em um livro que em outro), a estilística (a “escola” a que se filia o autor) e, finalmente, a forma que se reveste todas as outras, a da época. Ele sempre utiliza a relação dialética forma e conteúdo na análise de diversos romances.

Aborda ainda questões relacionadas com a recepção do romance. E também o desenvolvimento do gênero com o impacto de novas tecnologias (o rádio e a televisão e o computador). E se coloca contrário aos apocalípticos que decretam a morte do livro num futuro próximo. “Ora, a própria morte do livro só pode ser decretada em livro”, o maior pilar da civilização ocidental. E por fim: o que é literatura?

Joel Rufino dos Santos responde ironicamente que “literatura é o que editores, professores, resenhadores de lançamentos, publicitários de best-sellers dizem que é literatura”. Mas seu livro mostra que a literatura, o romance, é bem mais que isso. E sempre vai incomodar o sono do mundo. Essa é a função maior da literatura.

FIQUE POR DENTRO
Os formalistas

Joel Rufino dos Santos é professor aposentado da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de mais de 50 livros (ensaios históricos, romances, contos, peças de teatro infanto-juvenis. Pela editora Rocco, publicou”Quando eu voltei, tive uma surpresa (cartas da prisão para o filho), “Crônica de indomáveis delírios” (romance) e “Paulo e Virgínia – o literário e o esotérico no Brasil atual” (romance). “Quem ama literatura não estuda literatura – ensaios indisciplinados “, seu mais recente livro, ganhou elogios da crítica especializada. Bem-humorada, irônica, antidogmática, a obra é contrária a qualquer estrutura formalista. “Que sequelas Jakobson e cia deixaram em nosso ensino superior de literatura”?, indaga. Afinal, um dos primeiros mandamentos do estruturalismo formalista é nunca tratar a literatura como se fosse qualquer outra coisa que não linguagem. Segundo o professor, o estruturalismo é um anti-humanismo, “pois a própria ideia de homem desaparece onde não há significado”. “O que não deve ser confundido, aliás, com a falta de sentido (de um texto, de uma ação, da vida) que é ela própria um significado. É também esta, aliás, a fragilidade do pós-modernismo acadêmico: além de não fornecer qualquer orientação intelectual aos estudantes, tenta erigir a falta de orientação em virtude”. Essa mesma “tara textual” canonizou na academia, uma habilidosa estilista: Clarice Lispector, que, de talentosa escritora, foi transformada em “vaca sagrada”.

Fonte: Caderno 3 – Diário do Nordeste

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