A população negra é oito vezes mais assassinada que pessoas brancas em ações policiais no Ceará. Os dados constam na quinta edição do boletim “Pele Alvo: mortes que revelam um padrão”, lançada nesta quinta-feira (7).
Em 2023, o Ceará registrou 147 mortes decorrentes de intervenções policiais. Destas, a cor da pele é identificada somente em 53 casos. Dentre os identificados, 47 mortes são de pessoas negras ou pardas, o que representa 88,7% dos casos.
Os dados foram reunidos pela Rede de Observatórios da Segurança, obtidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria de Segurança Pública do Ceará.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social afirma que tem políticas voltadas para redução da mortalidade de pessoas negras e lançou, neste mês, um Painel Dinâmico de Monitoramento com informações sobre discriminação por raça e cor. Os profissionais da segurança passam por treinamento para realizar atendimento humanizado às pessoas negras. Confira abaixo mais detalhes sobre o posicionamento da pasta.
No estado, 71,5% da população cearense é composta por pessoas negras, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, o boletim também traz um dado sobre a faixa etária das vítimas: a juventude negra. Foram registradas 117 mortes de jovens entre 12 a 29 anos, representando 79,6% do total de vítimas.
“O alvo das ações policiais cearenses se mantém: homens negros, jovens e periféricos. Os responsáveis pela segurança pública afirmam que estão considerando as pesquisas e questões raciais na elaboração das políticas públicas do estado, mas, na prática, não há mudanças significativas no número de mortes”, afirmou Fernanda Lobato, pesquisadora e especialista da Rede de Observatórios da Segurança no Ceará.
Em comparação ao ano anterior (2022), houve queda de 3,3% no número total de vítimas de violência policial no estado. No entanto, a quantidade de pessoas negras não seguiu a diminuição. Em 2023, o número de mortes neste grupo teve aumento de 27,0% em decorrência de ações policiais no Ceará.
Negro, jovem e periférico
Nesta edição, o relatório analisou o primeiro ano de mandato de novos governos estaduais. Os dados do Ceará indicaram que o número de negros mortos em ações policiais foi oito vezes superior ao número de brancos mortos.
“A polícia ainda associa confrontos à letalidade. Nos últimos cinco anos, não houve uma transformação sistemática nessa política; o Estado precisa levar a sério o compromisso com o fim da letalidade policial contra a juventude negra”, destacou Fernanda Lobato.
Em cinco anos de monitoramento, a organização do boletim apontou a falta de transparência dos governos estaduais como um obstáculo para a interpretação dos dados e, por consequência, da conjuntura da letalidade policial no Ceará.
Conforme a organização, há um grande déficit de informação: 63,9% das vítimas mortas por intervenções do Estado não tiveram registradas a raça e a cor. Somente em Fortaleza foram registradas 30 mortes, mas dessas apenas 8 tinham informação de cor/raça.
Ações do estado
A Secretaria da Segurança Pública afirmou, por meio de nota, que é “comprometida” em reduzir estigmas e vulnerabilidades de pessoas negras. Como resultado de uma cooperação entre as pastas, lançou em novembro de 2024 uma campanha para conscientizar sobre a inclusão de raça, cor e etnia nos dados da Carteira de Identidade Nacional (CIN), emitida pela Perícia Forense do Ceará.
Também lançou um Painel Dinâmico de Monitoramento, em novembro, com dados públicos de discriminação racial e étnica, extraídos do Sistema de Informações Policiais). Em breve, uma nova tecnologia substituirá o sistema atual, permitindo cruzamento de dados para facilitar investigações e traçar o perfil de vítimas de crimes.
Ainda conforme a pasta, profissionais da Segurança Pública passam por formações para atendimento humanizado a pessoas negras e outros grupos vulneráveis. Neste mês, será ofertada uma oficina sobre racismo e intolerância religiosa. A Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp) oferece cursos sobre intervenções não letais e atuação com grupos vulneráveis, com 4.640 servidores formados entre 2023 e outubro de 2024. Seis outros cursos estão em andamento.
A Polícia Militar e a Polícia Civil realizam palestras mensais em escolas sobre prevenção à violência, bullying e respeito ao próximo, além de promoverem atividades culturais com crianças e adolescentes.
Por fim, a SSPDS informa que todas as mortes em intervenções policiais são investigadas com seriedade pela Polícia Civil e avaliadas pelo Ministério Público. A Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública atua de forma autônoma, garantindo processo legal e segurança jurídica na avaliação da conduta de servidores.
Racismo estrutural
A advogada Helena Carvalho destacou que o perfil das vítimas em intervenções policiais é parte de um problema mais amplo. “Infelizmente, isso se dá por conta do que a gente chama de racismo estrutural. O racismo estrutural é uma teoria que fala que o racismo não é uma ação individual, mas sim uma ação coletiva”, explicou a advogada, que é da comissão de igualdade racial da Ordem dos Advogados do Estado do Ceará (OAB-CE).
“É impossível falarmos em justiça enquanto existe um grupo, enquanto existe uma minoria que é majoritariamente, escandalosamente, atingida pelo preconceito e morta também pelo preconceito” — Helena Carvalho, advogada.
“Ou seja, ele está enraizado na nossa sociedade, nas nossas instituições, na forma como agimos, na forma como já podemos presumir que talvez uma pessoa negra na rua seja uma pessoa criminosa, seja uma pessoa suspeita. Isso leva a um grande número de mortes da população negra nessas ações policiais.
“Inclusive, em abril desse ano, o STF condenou o que nós chamamos de perfilamento racial, como uma prática ilegal, que é justamente esse ato de abordar alguém unicamente por conta das suas características físicas, da sua cor de pele, por conta do seu cabelo, por conta do seu gênero, da sua orientação sexual”, complementou.