Polícia Federal investiga incêndio de casas em quilombo em Lagoa do Tocantins 

Comunidade é ameaçada por grileiros desde 2023; cinco residências já foram incendiadas

Mais uma casa foi incendiada no Quilombo Rio Preto, em Lagoa do Tocantins (TO). O crime aconteceu na tarde de quarta-feira (19) e é o quinto caso de uma série de violências contra o território quilombola, que sofre com ameaças desde, pelo menos, 2023. O caso está em investigação pela Polícia Federal (PF).

Moradores da área relatam ter visto alguns homens passando em motocicletas e, minutos depois, a fumaça. Em um vídeo gravado após o incêndio, um morador da área mostra as cinzas da construção. Feita de palha e madeira, a casa foi rapidamente consumida pelas chamas.

“Eles pegaram a casa, cortaram e juntaram tudo (…). Tocou gasolina e tocou fogo” conta Dalva, nome fictício de uma moradora que pede para não ter a identidade revelada por medo de retaliações. “E aí quando os quilombolas chegaram lá, filmaram. Ainda tinha fumaça”, diz.

Em nota publicada no site oficial, a Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO) informa ter encaminhado um ofício para a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP) solicitando providências urgentes em defesa do território.

“O fato agrava ainda mais a insegurança dos moradores e evidencia a necessidade urgente de intervenção efetiva por parte das forças de segurança do Estado para a proteção da comunidade e a apuração rigorosa dos crimes praticados”, destaca Kenia Martins Pimenta, coordenadora da Defensoria Pública Agrária e Ambiental (DPagra).

Ela informa que a defensoria acompanha o caso desde 2023, quando aconteceram os primeiros incêndios. “Estamos cobrando respostas das autoridades nas apurações desses atos criminosos de violência”, diz.

Para moradores, impunidade instiga novos crimes

No dia 24 de setembro de 2023, moradores estavam dentro de uma casa quando ouviram barulhos do lado de fora. Ao sair, viram chamas no telhado de palha. “Nós apagamos a tempo, antes de queimar mais”, contou um morador, em reportagem publicada pelo observatório De Olho nos Ruralistas.

Naquele ano, os moradores foram ameaçados com tiros disparados perto das casas e tiveram roçados destruídos por tratores comandados pelos invasores da área. Os acusados também barraram a estrada de acesso ao município, deixando os quilombolas isolados.

Marcas de um dos incêndios de 2023 (Arquivo pessoal)

De acordo com reportagem publicada pelo Brasil de Fato, os ataques de 2023 se intensificaram depois que a juíza Aline Iglesias do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ-TO) revogou a reintegração de posse que ameaçava expulsar as famílias. O pedido negado havia sido feito por Cristiano Rodrigues de Sousa – político que tentou se eleger vice-prefeito da cidade pelo MDB em 2020 – e pela empresa Lagoa Dourada Participações e Serviços S/C Ltda. À época, o Brasil de Fato entrou em contato com ambos, mas não teve retorno.

O caso mais recente, no entanto, tem um novo suspeito, um fazendeiro goiano que estaria tentando grilar terras na região. Em janeiro de 2025, ele mandou seus funcionários instalarem uma cerca no território, na tentativa de impedir os moradores de terem acesso ao rio usado para o abastecimento da comunidade.

Os moradores registraram um Boletim de Ocorrência (BO) sobre o caso. Dias depois, em 3 de fevereiro, representantes da DPE-TO estiveram no quilombo, junto de funcionários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em uma ação “pra apurar atos de descumprimento duma decisão judicial que assegura a posse da área ao quilombo”, informa Pimenta. Também participaram da ação a Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais do Estado do Tocantins (Sepot), a Secretária Estadual de Igualdade Racial e a Secretária estadual de Direitos Humanos.

Os quilombolas sentem que a impunidade dos casos anteriores instigou novas investidas contra o território. “Como eles não responderam ainda judicialmente, não tiveram que pagar por nenhuma roça que eles destruíram, eles não tiveram que pagar por nenhuma casa que eles queimaram ou que passaram por cima com o trator, eles não tiveram que pagar nada, por fazer esbulho, pelas ameaças, por nada (…) Isso tá causando nos demais fazendeiros também uma sensação de tranquilidade para também nos atacar”.

Violência expulsou famílias do território ancestral

A série de ameaças obrigou dezenas de quilombolas a saírem do território ocupado por seus antepassados há pelo menos seis gerações. Atualmente, 30 famílias permanecem na área.

“Quem tem crianças, por exemplo, não pode ficar, porque quando vem os pistoleiros, a gente tem que sair correndo e entrar no rio e tem criança que não consegue porque não sabe nadar”, conta a moradora.

Em 2023, uma equipe da Sepot esteve na região para elaborar um relatório antropológico. O documento lista elementos como o modo de vida comunitário, as manifestações culturais, o cultivo das roças, os utensílios e os relatos dos moradores. “A identidade negra quilombola da comunidade Rio Preto é indiscutível”, indica o laudo, que é um documento importante no processo de demarcação do território. O reconhecimento é essencial para garantir a segurança dos quilombolas dentro do território ancestral.

De acordo com Edmundo Rodrigues, superintendente regional do Incra Tocantins, o instituto está em contato com a Sepot para elaborar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que configura mais uma etapa do processo de demarcação. “Estamos acompanhando a situação de violência e ameaças que às famílias quilombolas vêm sofrendo e estivemos na comunidade junto com outros órgãos federais e estaduais para, no esforço conjunto, coibir a violência que lá vêm acontecendo”, informa Rodrigues.

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