Política em primeira pessoa

Negros e pobres não precisam que pensem por nós

Por Letícia Chagas, Da Folha de S.Paulo

Foto em preto e branco de Letícia Chagas - mulher negra de cabelo crespo- olhando para frente
A universitária Letícia Chagas, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto (gestão 2020) da Faculdade de Direito da USP (Foto: Letícia Lé)

Um dia desses assisti à entrevista de um político importante. Prestei atenção em seu discurso e na sua fisionomia. Ele era polido, bem-vestido, branco. Provavelmente, muito diferente da maioria de seus eleitores. Tinha uma boa retórica, desviava bem de perguntas comprometedoras e falava da importância de se realizar políticas públicas para os pobres. Nós, “os pobres”, porém, éramos sempre a terceira pessoa.

Essa cena fez com que eu refletisse sobre qual vem sendo nossa atuação no cenário político tradicional brasileiro —a política como é feita nas Casas Legislativas do país.

Frequentemente somos citados nos discursos de políticos enquanto um grupo a ser agradado e controlado a fim de se garantir uma base eleitoral para as próximas eleições. Em outras ocasiões, somos vistos enquanto grupo indefeso que precisa ser cuidado pelo “político-salvador” —e raramente enquanto pessoas que encontram formas de resistência mesmo em meio à marginalização, sujeitos de nossas próprias histórias.

Nos últimos tempos, alguns de nós vêm passando a fazer parte de importantes espaços de decisão. A eleição da minha chapa —a Travessia— enquanto gestão do Centro Acadêmico XI de Agosto, entidade que representa os estudantes da Faculdade de Direito da USP, demonstra que pessoas negras e pobres, que historicamente estiveram envolvidas nas lutas de nosso país, vêm aos poucos conquistando visibilidade.

O Largo São Francisco é hoje um dos principais símbolos do tradicionalismo branco e da burocracia estatal, mas em 2020 uma chapa repleta dos filhos e filhas de trabalhadores que nunca sequer pisaram ali será a responsável por representar os estudantes da faculdade.

Para além de nos alçarmos enquanto membros de espaços de poder, precisamos pensar em alternativas à atual democracia representativa liberal. Atualmente, a política no Brasil é construída para manter no poder aqueles que sempre estiveram com ele: a elite branca e eurocêntrica que historicamente ocupou nossas instituições. Pessoas como nós são sempre a exceção em meio a esse contexto. É preciso pensar em uma alternativa democrática a esse cenário; uma alternativa que talvez ainda nem exista e que precisa ser pensada também por aqueles que historicamente foram excluídos dos espaços públicos. Não precisamos que outros pensem por nós.

Refletir sobre o papel político que temos, enquanto “os pobres” nas instituições políticas brasileiras, fez com que eu me lembrasse do meu avô. Minha mãe conta que ele trabalhou como operário na construção de Brasília e, apesar de ser fascinado por política, nunca ocupou aquele espaço para além de um operário.

Homens negros como ele são poucos no Congresso. A democracia só estará viva quando aqueles historicamente marginalizados não forem mero objeto das frases de outrem. Vô, um dia poderemos falar por nós mesmos.

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