Políticas antidiversidade nos EUA reacendem o alerta no Brasil

Efeito cascata é inevitável, com o fortalecimento de setores que já defendem a redução de práticas afirmativas e o enfraquecimento de direitos sociais

Não é mais ameaça ou especulação do campo progressista, agora é realidade. Os efeitos imediatos atingem o radicalismo máximo da extrema direita naquele que é considerado o cargo mais poderoso do planeta. Se a globalização surgiu e foi reforçada por décadas nos Estados Unidos, hoje o slogan repetido por Donald Trump —”America first”— já nasce de um erro conceitual grave.

Um país construído à base de imigração e miscigenação não deveria fazer ode à supremacia branca e heteronormativa. A ideia de fortalecer e ampliar os muros prometidos por Trump como “intransponíveis” para expulsar imigrantes já era esperada desde que o presidente recém-empossado acenou com uma nova candidatura, mas as medidas antidiversidade, equidade e inclusão anunciadas no discurso de posse (e colocadas em prática horas depois) coíbem e proíbem o desenvolvimento de políticas públicas e privadas e transformações culturais na sociedade, desmontando décadas de avanço.

O documento divulgado pela Casa Branca no último dia 22 de janeiro afirma que o decreto “restaura os valores da dignidade individual, do trabalho duro e da excelência”. E, no discurso de posse, Trump já havia prometido (assim como durante toda a campanha) “formar uma sociedade que não vê cores e que tem como base o mérito”.

As medidas não atingem apenas as instituições diretamente ligadas ao governo —agências federais foram orientadas a acabar com programas de diversidade também no setor privado. E sabemos que as grandes companhias, incluindo as poderosas big techs, estão alinhadas à nova gestão norte-americana.

A influência dos Estados Unidos na formulação de políticas públicas e privadas no mundo é inegável. Se as maiores corporações americanas forem pressionadas a abandonar compromissos com a diversidade, outras empresas globais podem seguir esse caminho para se manterem competitivas no mercado.

Movimento que, indiscutivelmente, vai impactar a formação de futuras lideranças globais. Além disso, se não tivermos as populações diretamente representadas nos espaços de decisão, as políticas continuarão a refletir apenas os interesses de grupos historicamente privilegiados. A ausência de diversidade impede a criação de medidas eficazes para romper com desigualdades estruturais, perpetuando exclusões.

Outro reflexo preocupante ocorre no cenário político: líderes de extrema direita em outros países podem se sentir legitimados a adotar medidas semelhantes, fragilizando ainda mais a luta pela equidade racial, sexual e de gênero. No Brasil, essa influência pode fortalecer setores políticos que já defendem a redução de políticas afirmativas e o enfraquecimento de direitos sociais.

Além das medidas diretas e avassaladoras contra a diversidade, equidade e inclusão firmadas, vale destacar algumas das inúmeras decisões perigosas de alto impacto para todo o planeta. Um dos decretos restringe drasticamente a ajuda dos Estados Unidos a políticas externas, principalmente as que promovem equidade racial e de gênero, combate à mudança climática, educação midiática e regulação das big techs.

Os prejuízos em âmbito mundial são incalculáveis. E, para o Brasil, essa guinada pode significar uma redução no financiamento de iniciativas sociais apoiadas por fundações americanas e que atuam em causas essenciais no contexto brasileiro. Isso sem falar nas decisões para aumentar a exploração de combustíveis fósseis, reduzir incentivos à transição energética e retirar, mais uma vez, os Estados Unidos do Acordo de Paris, o que nos afeta ampla e diretamente.

As ações de Donald Trump não são apenas um ataque simbólico —elas têm consequências reais e imediatas para milhões de pessoas. O efeito cascata é inevitável e preocupante, ameaçando conquistas fundamentais no combate às desigualdades. Justamente por isso, a resistência se faz ainda mais necessária e deve extrapolar as fronteiras norte-americanas. Governos, empresas, universidades e ONGs precisam reafirmar o compromisso com valores inegociáveis e estruturantes de uma sociedade minimamente justa, independentemente das pressões políticas.

Tratar diversidade, equidade e inclusão como questão partidária é algo que já vimos por aqui e que precisa ser superado.


Maria Alice Setubal (Neca) – Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), é socióloga e presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal

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