População negra é a mais afetada pela insegurança alimentar

Alta no desemprego provocada pela crise econômica e pela pandemia agravaram a situação da fome no Brasil. População negra é a principal vítima.

A atual situação econômica, a pandemia do novo coronavírus e a alta do índice de  desempregados no país catapultaram o Brasil de volta a um passado não muito distante: ao país da fome.

Em 2014, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) declarou que o Brasil estava fora do Mapa da Fome, com menos de 2,5% da população em situação de insegurança alimentar. Graças a programas que visavam diminuir a desigualdade, o país conseguiu reduzir em 82% o número de brasileiros que passavam fome, entre os anos de 2002 e 2013.

Porém, a situação econômica se agravou junto à pandemia. A taxa de desemprego atingiu 12,6% da população em novembro de 2021, cerca de 13,5 milhões de pessoas. De acordo com o Índice de Preços ao Produtor (IPP), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os valores dos produtos da indústria cresceram 33% no período de um ano, de julho/20 a agosto/21. Os produtos do setor alimentício foram os que tiveram as maiores altas de preço.

Frente a essa conjuntura, um auxílio emergencial digno às famílias é mais do que necessário. Porém, com o fim do Bolsa Família, encerrado pelo governo do atual presidente Jair Bolsonaro, a situação tende a piorar. O recém-criado Auxílio Brasil, que fornece apenas 400 reais mensais, vai só até dezembro de 2022.

Em meio a uma pandemia em que o isolamento social é uma das recomendações para evitar a infecção e a disseminação do vírus, sair de casa para trabalhar – quando há trabalho – e conseguir se alimentar é imprescindível para uma parte expressiva da população, majoritariamente negra.

De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), a fome esteve presente em 10,7% das casas de pessoas negras, número maior que o encontrado nas de pessoas brancas (7,5%). O trabalho foi realizado em dezembro de 2020.

Qual a diferença entre insegurança alimentar e fome?

Mais do que uma sensação desagradável quando não há nutrientes suficientes para se gerar energia, a fome é utilizada como um conceito dentro da subnutrição. “Não consideramos só o aspecto quantitativo, mas também o aspecto da qualidade. A gente precisa analisar qual o tipo de alimentos que essa população está ingerindo e tem acesso. Quando há defasagem na qualidade e na quantidade da alimentação, a gente pode caracterizar a fome”, aponta Áurea Santa Izabel, nutricionista clínica e esportiva e pesquisadora em segurança alimentar e nutricional para a população negra.

A Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar (EBIA) é a principal ferramenta para analisar as condições da fome no país. Ela foi desenvolvida em 2003, baseada em uma escala americana, por meio de um projeto desenvolvido pela Unicamp, UNB, UFPB, UFMT e INPA.

A escala classifica a insegurança alimentar em três níveis: leve, moderada e grave, variando conforme o acesso, a constância, a qualidade e a quantidade, entre outros fatores.

  • insegurança alimentar leve –  há preocupação ou incerteza quanto ao acesso a alimentos no futuro ou  piora na qualidade dos alimentos, para evitar comprometer a quantidade de alimentos;
  • insegurança moderada – há redução quantitativa de alimentos entre os adultos ou ruptura nos padrões de alimentação, por conta da falta de alimentos;
  • insegurança alimentar grave – há redução quantitativa severa de alimentos também entre as crianças. É nesse nível que se classifica a fome.

Por meio de um questionário com 14 perguntas que analisam a alimentação das famílias nos últimos três meses, é possível identificar por amostragem a situação da insegurança alimentar no país. Cada resposta tem uma pontuação, e a soma dos pontos resulta em um valor classificatório. 

Dados do Inquérito da Rede PENSSAN apontam que 19,1 milhões de pessoas, equivalente a 9% da população brasileira, encontravam-se em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, passando fome no Brasil, no primeiro ano da pandemia.

Os subprodutos da pandemia

Fragmentos de arroz, bandinha de feijão, miúdos de boi e sambiquira, a parte final da coluna do frango, começaram a fazer parte da mesa de boa parte dos brasileiros. Mesmo que já existissem nas prateleiras antes da pandemia, eles agora ganharam espaço na alimentação de milhões de pessoas, devido ao seu custo menor e à redução da renda. Por mais que tenham algum valor nutricional, esses alimentos não devem compor a base da alimentação ideal da população.

“Principalmente pela questão da humanidade. A gente está se referindo a pessoas, e não é porque alguém não costuma ter acesso a uma boa alimentação que ele merece receber qualquer coisa”, afirma a nutricionista.

O organismo necessita de vitaminas e nutrientes específicos para manter seu bom funcionamento e prevenir problemas de saúde. A ausência de um ou mais elementos pode acarretar prejuízos a curto e médio prazo. Frutas, verduras e legumes são essenciais na alimentação.

Entre as diversas doenças que podem ser desencadeadas pela ausência de uma alimentação adequada estão desnutrição, cegueira, raquitismo, anemia, queda da imunidade, aumentando o risco de infecções, fragilidade óssea, transtornos mentais e até morte por inanição.

Além dessas condições que podem afetar qualquer pessoa independentemente da idade, a insegurança alimentar traz graves consequências para as crianças, já que elas estão em fase de formação e desenvolvimento. Perda de memória, dificuldade de aprendizado, falta de atenção, má-formação óssea, déficit no crescimento, entre outras, que podem ter consequências ao longo da vida. A taxa de mortalidade infantil tende a crescer com o aumento da fome no país.

O problema, porém, não é a escassez desses alimentos. É a falta de acesso. “A insegurança alimentar é um problema social e político. O Brasil é um dos países que mais produz alimentos no mundo e, em contrapartida, tem uma população com nível de insegurança alimentar gravíssimo. É uma questão de distribuição. Boa parte da produção de alimentos é voltada para exportação e alimentação de gado”, alerta Áurea.

A população negra e o acesso

Pretos e pardos compõem a maior parte da população pobre brasileira, que mora nas periferias das grandes cidades e locais mais afastados das áreas rurais. São eles os mais vulneráveis às consequências sociais da crise econômica e sanitária. No entanto, mesmo antes da pandemia, essa parte da população já era a que mais sofria com os chamados desertos alimentares. 

Áurea explica que esses desertos “são áreas em que não existem estabelecimentos que ofereçam variedade de alimentos (in natura). A gente tem ali somente o acesso à vendinha da esquina ou ao mercadinho mais familiar. E mesmo esses estabelecimentos não têm acesso aos fornecedores de frutas, legumes e verduras”. De acordo com dados do Vigitel 2018, do Ministério da Saúde, o consumo regular desses alimentos é 33% menor na população negra quando comparada à população branca.

Como consequência, produtos industrializados e ultraprocessados chegam com mais facilidade tanto ao mercado quanto à dispensa das famílias. Refrigerante, macarrão instantâneo, bolachas recheadas, embutidos, entre outros, passam a compor a alimentação do dia a dia.

“A gente tem também a questão financeira. Se você não tem opção de oferta, nem dinheiro para isso, você vai optar por aquilo que pode pagar. Os ultraprocessados são mais baratos, porque são produzidos em larga escala, e as indústrias têm diversos subsídios do governo para que sejam barateados”, explica a nutricionista.

Esses produtos, além de terem baixo valor nutricional, muitas vezes são ricos em açúcar e sódio. A população negra é a maioria entre as pessoas com diabetes e hipertensão no Brasil. Aspectos genéticos podem aumentar o risco de desenvolver a doença, mas a alimentação e a falta de atividade física são fatores importantes.

O acesso a profissionais também é um problema, já que no SUS existem poucos nutricionistas por região nas unidades de saúde. “Deveria existir na atenção primária um profissional de cada área. É um serviço essencial, porque estamos falando de prevenção. A gente tenta mudar essa imagem de que nutrição é algo só de estética, para quem quer emagrecer ou para quem está malhando e quer ganhar mais massa muscular. Nutrição é uma questão de saúde”, aponta Santa Izabel.

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