Por que a autora feminista Chimamanda Ngozi Adichie está sendo chamada de transfóbica

Chimamanda Ngozi Adichie foi alvo de comentários nas redes sociais por sua declaração a respeito das mulheres trans.

por Ana Beatriz Rosa no HuffPost Brasil

A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é reconhecida pelos seus livros que tratam do feminismo e da questão de gênero, mas recentemente foi alvo de comentários hostis nas redes sociais após dar uma declaração sobre mulheres trans em uma entrevista para um canal de televisão inglês.

Na última sexta-feira (10), Chimamanda foi entrevistada pelo canal inglês Channel 4 sobre o seu novo livro Dear Ijeawele Or a Feminist Manifesto in Fifteen Suggestions (Querida Ijeawele, ou um manifesto feminista em quinze sugestões, em tradução literal. No Brasil, o livro foi lançado com o título Para Educar Crianças Feministas).

Na entrevista, a autora falou sobre as mulheres transgênero:

“Eu acho que todo o problema de gênero no mundo é sobre nossas experiências. Não é sobre como usamos nossos cabelos ou se temos uma vagina ou um pênis. É sobre a maneira como o mundo nos trata, e eu acho que se você viveu no mundo como um homem com os privilégios que o mundo concede aos homens e, em seguida, vivenciou a mudança de gênero, é difícil para mim aceitar que, em seguida, podemos igualar a sua experiência com a experiência de uma mulher que vive desde o início de sua vida como uma mulher, e que não teve os privilégios que os homens tem.”

Assista a entrevista completa:

A declaração da autora provocou um debate em grupos feministas, de diversas vertentes, sobre mulheres, transição de gênero e feminismo não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil e em outros países pelo mundo. Nas redes, muitos apoiaram o posicionamento de Chimamanda, mas para alguns a fala dela foi classificada como transfóbica.

(“Eu sou uma mulher negra que não é trans e sou alguém que foi profundamente influenciado por seu trabalho. E eu tenho que dizer seus comentários são mal informados e decepcionante, para dizer o mínimo. Claro, há espaço no feminismo para diferentes experiências. Mas há espaço no feminismo para opiniões mal informadas e apagamento? Esse tipo de feminismo nos encoraja a fechar os olhos à violência que as mulheres trans enfrentam todos os dias. Este “estudo de caso” que você continua a se referir como alguém que vive por 30 anos como um homem também é perigoso e incrivelmente limitante. É uma maneira de fazer um estereotipo de mulheres trans e é ofensivo e limitador realmente. Você está errada em falar sobre as experiências que não são as suas próprias, e é aí que isso fica preocupante para mim. Generalizar as experiências de todas as mulheres trans dessa forma é francamente errado. Eu realmente espero que em vez de se aprofundar sobre isso, que você crie espaço para ouvir as experiências reais de trans mulheres – há uma abundância de recursos para fazer isso aqui e em 2017 não há realmente nenhuma desculpa. Meu feminismo não é condicional e não tem asteriscos. Espero sinceramente que o seu também não seja.”)
Jarune Uwujaren se identifica como uma mulher trans não-binária.

Em seu texto intitulado Por que os comentários de Chimamanda Ngozi Adichie sobre mulheres trans estão errados e perigososela defende que o argumento da autora nigeriana contribui para o apagamento das vivências trans e reforça a hegemonia cisgênera – ideia de uma sociedade em que o sexo que você nasceu define a sua identidade.

De acordo com Uwuajaren, o pensamento de Adichie não consegue reconhecer que ela “não tem lugar de fala para dizer como as mulheres trans devem ser ou se sentir no mundo.”

“Talvez esses aliados cis, que pensam como Adichie, acreditam que ‘as pessoas transexuais serem o que elas são’ é suficiente para constituir aceitação e progressos, e por isso não vêem o mal em chamar as mulheres trans de privilegiadas por serem lidas como homens numa sociedade que procura destruí-las por serem as mulheres que são. Ou talvez eles tenham mantido a crença de que as experiências de gênero de pessoas trans são menos válidas do que as de pessoas cis, mas ficaram nulas sobre o assunto, não querendo parecer insensívis agora que mais trans estão falando por si e por suas próprias experiências. […] O discurso de Adichie não consegue reconhecer que ela não tem o lugar de fala para dizer como as trans mulheres devem ser ou como elas vivem no mundo. Os movimentos feministas de nosso tempo têm sido historicamente pressionados pelo essencialismo de gênero, pelo cissexismo, pela transfobia e pela crença de que as pessoas trans não são quem dizem ser, mas que são violentamente pressionadas a serem.”

A autora nigeriana, então, resolveu usar sua página do Facebook para falar sobre o tema.

No post publicado na madrugada da sexta-feira (11), a autora não negou a existência das mulheres trans e reforçou o seu argumento de que há diferenças entre mulheres trans e cisgênero.

Para ela, as mulheres trans, assim como as mulheres cis, sofrem violências de gênero. Ela não estabelece que uma sofra mais ou menos que outra. Porém, a autora explica que as mulheres trans nasceram homens e, por isso, em alguma fase de suas vidas, foram lidas e entendidas como homens pela sociedade – o que faz com que elas tenham vivenciado privilégios de um mundo pautado no sistema patriarcal.

Isso, por outro lado, não quer dizer que as mulheres trans se identificavam internamente com o gênero masculino. Ou que elas deixaram de sofreram violências por não performarem de fato o papel imposto pela sociedade aos homens – os estereótipos de masculinidades.

Ela ainda defende que o fato de terem nascido como homens influencia a experiência de gênero que as mulheres trans vão desenvolver. Porém, afirma que isso não faz das mulheres trans menos sujeitas às violências da misoginia.

Para Chimamanda ter nascido com vagina importa. Ela viveu na Nigéria, país que, assim como outros, foi conivente por muito tempo com a mutilação genital em que meninas têm seus clítores e grandes lábios retirados por meio de uma incisão que pode levar à infertilidade e até a morte. A prática foi proíbida no país em 2015 e de acordo com levantamento da ONU, cerca de 125 milhões de mulheres ao redor do mundo são vítimas da mutilação. A África e o Oriente Médio aparecem como as regiões com os números mais preocupantes.

“É claro que as mulheres trans fazem parte do feminismo. Eu não acredito que a experiência de uma mulher trans é a mesma que a de uma pessoa que nasceu mulher. Eu não acredito que, digamos, uma pessoa que viveu no mundo como um homem por 30 anos vivencia a questão de gênero da mesma forma que uma pessoa que é mulher desde o nascimento. O gênero é importante por causa da socialização. E nossa socialização molda como nós ocupamos nosso espaço no mundo. Dizer isto não é excluir as mulheres trans do feminismo ou sugerir que as questões trans não são questões feministas ou diminuir a violência que elas experimentam – uma violência que é pura misoginia. Mas simplesmente dizer que reconhecer diferenças e ser solidário não são mutuamente exclusivos. E que há espaço no feminismo para diferentes experiências.”

Mas a discussão ganhou ainda mais força e, no último domingo (12), Chimamanda publicou um texto que ela intitulou como o esclarecimento sobre sua fala.

No novo post, a autora nigeriana diz que resolveu “sair da defensiva” e que não se reconhecia ao ser rotulada como “transfóbica”.

Ela voltou a argumentar sobre as nuances que diferenciam as mulheres trans e cisgênero. Para ela, falar sobre esse tema é importante, pois é preciso entender as “diversidades” quando se trata de questões de gênero.

Em seu texto, Chimamanda, ainda, afirma que por ser uma “voz” na defesa dos direitos LGBTs, suas palavras ganham importância “automática” e ela precisa que seus discursos sejam compreendidos.

Dessa forma, a autora não usa o termo “cis”, mas prefere diferenciar entre as mulheres trans – que nasceram homens e transicionaram – e as mulheres que nasceram mulheres.

No post, a autora também chama atenção entre a diferença que existe em discutir a questão de gênero da perspectiva individual e discutir a questão de gênero de forma estrutural.

Leia o post completo da autora Chimamanda Ngozi Adichie traduzido para o português:

“Esclarecimento

Como sempre fui alvo de muita hostilidade por defender os direitos dos LGBT na Nigéria, me vi muito na defensiva ao ser rotulada de “transfóbica”. Meu primeiro pensamento foi – como alguém poderia pensar isso? Eu não gostei dessa versão de mim mesma. Parecia uma pessoa branca dizendo: “Não sou racista, apoiei os direitos civis”. Porque a verdade é que eu acho que uma pessoa pode sim ser transfóbica e apoiar os direitos LGBT. E assim eu quero colocar minha defensiva de lado e esclarecer meus pensamentos. Para me certificar de que sou plenamente compreendida.

Eu disse em uma entrevista que as mulheres trans são mulheres trans, que são pessoas que, nascidas do sexo masculino, se beneficiaram dos privilégios que o mundo dá aos homens e que não devemos dizer que a experiência das mulheres nascidas mulheres é a mesma que a experiência das mulheres trans. Isso perturba muitas pessoas, e eu considero suas preocupações válidas. Eu percebo que eu ocupo esta estranha posição de ser uma “voz” para os direitos de gênero e por isso há uma importância automática nas minhas palavras. Eu acho que o impulso de dizer que as mulheres trans são tão mulheres quanto as mulheres nascidas mulheres vem de uma necessidade de fazer as questões trans serem mainstream. Porque, tornando-as mainstream, poderíamos reduzir as muitas opressões que as trans experimentam. Mas não me parece sincero. A intenção é boa, mas a estratégia não é verdadeira. A diversidade não tem de significar divisão.

Porque podemos ser contra a violência contra as mulheres trans e ainda assim reconhecer as diferenças. Porque devemos ser capazes de reconhecer estas diferenças e, ao mesmo tempo, ser solidário. Porque nós não temos que insistir, em nome de ser solidário, que tudo é o mesmo. Porque corremos o risco de reduzir o gênero a uma única coisa essencialista.

Talvez eu deva ter dito que as mulheres trans são mulheres trans e as mulheres cis são mulheres cis e todas são mulheres. Exceto que “cis” não é uma parte orgânica do meu vocabulário. E provavelmente não seria entendido por uma maioria de pessoas. Porque dizer ‘trans’ e ‘cis’ reconhece que há uma distinção entre as mulheres nascidas mulheres e as mulheres que fizeram a transição, sem elevar uma ou outra, que era o meu ponto.

Eu defendo e continuarei a defender os direitos das pessoas transexuais. Não apenas por causa da violência que elas experimentam, mas porque são seres humanos iguais que merecem ser o que são.

Vejo como a minha afirmação de que não devemos confundir as experiências de gênero das mulheres trans com as mulheres nascidas mulheres poderia parecer como se eu estivesse sugerindo que uma experiência é mais importante do que a outra. Ou que as experiências das mulheres trans são menos válidas do que as das mulheres nascidas do sexo feminino. Eu não penso assim em tudo – eu sei que as mulheres trans podem ser vulneráveis de diversas maneiras que as mulheres nascidas mulheres não são. Isso, novamente, é uma razão para não negar as diferenças.

Por que isso importa? Porque é uma questão de gênero.

Gênero é um problema não por causa de como nos vemos ou como nos identificamos ou como nos sentimos, mas por conta de como o mundo nos trata.

As meninas são socializadas de formas que são prejudiciais ao seu senso de identidade – para se reduzir, para atender aos egos dos homens, para pensar em seus corpos como objetos de vergonha. Como mulheres adultas, muitas lutam para superar, para desaprender, muito desse condicionamento social.

Uma mulher trans é uma pessoa nascida do sexo masculino e uma pessoa que, antes da transição, foi tratado como homem pelo mundo. O que significa que eles experimentaram os privilégios que o mundo concede aos homens. Isso não descarta a dor da confusão de gênero ou as complexidades difíceis de como eles se sentiam vivendo em corpos não se identificavam.

Porque a verdade sobre os privilégios sociais é que não se trata de como você se sente. (Os brancos anti-racistas ainda se beneficiam do privilégio racial nos Estados Unidos). É sobre como o mundo trata cada um, sobre as coisas sutis e não tão sutis que você internaliza e absorve.

Isso não quer dizer que as mulheres trans não tenham sofrido dificuldades como meninos. Mas eles não passaram por essas dificuldades realmente específicas por nascerem do sexo feminino, e isso é importante porque essas experiências moldam como mulheres adultas nascidas mulheres interagem com o mundo.

E porque ser humano é um ser complexo que compreende todas as suas experiências, é falso dizer que o fato de terem nascido como homens não tem nenhum efeito em sua experiência de gênero como trans mulheres.

Claro que existem diferenças individuais. Mas há sempre diferenças individuais. Falamos de “questões de mulheres” sabendo que, embora haja diferenças individuais, a verdade da história humana é que as mulheres como um grupo têm sido tratadas como subordinadas aos homens. E falamos de privilégio masculino reconhecendo que os homens individuais diferem, mas que os homens como um grupo são todavia privilegiados pelo mundo inteiro.

Penso no feminismo como Feminismos. Raça e classe moldam nossa experiência de gênero. A sexualidade molda nossa experiência de gênero. E assim, quando digo que penso que as mulheres trans são mulheres trans, não é para diminuir ou excluir as mulheres trans, mas para dizer que não podemos insistir – não importa quão boas sejam as nossas intenções – que elas são os mesmos que as mulheres nascidas do sexo feminino.

Nem acho que precisamos insistir que ambas são as mesmas. Reconhecer experiências diferentes é começar a avançar para entender conceitos mais fluidos – e portanto, mais honestos e verdadeiros para o mundo real – de gênero.”

Afinal, o que é ser trans? Entenda:

O movimento trans parte do princípio de que gênero é uma expressão de identidade. Assim, a identidade de gênero independe do sexo biológico da pessoa.

Cisgênero é quem nasce com um pênis e se identifica como um homem ou quem nasce com uma vagina e se identifica como uma mulher.

Já transgênero é quem se identifica com um gênero diferente do qual o seu sexo biológico é designado – ou que não se identifica com nenhum dos gêneros.

É preciso reforçar que gênero não é a mesma coisa que orientação sexual.

Ainda, a sociedade é dividida entre a ideia binária do que é um homem e do que é uma mulher. Quem não se identifica com o espectro de gênero entre esses dois pólos ou com o que está fora deles são os não-binários. Exemplos dessas pessoas são aqueles que se identificam como “gêneros fluidos”.

As informações são do site Cidadania Trans.

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