Este autor gosta de esportes (tem até amigos que praticam), não desgosta das Olimpíadas (mas acha um crime ela ter passado por cima de tanta gente pobre para ser realizada), não tem complexo de vira-lata (mas pensa que falta autocrítica ao brasileiro) e não é saudosista (apenas considera muito triste as figuras de linguagem estarem caindo em desuso, enquanto a mesóclise volta à moda).
Por Leonardo Sakamoto Do Blog do Sakamoto
Dito isso, preciso confessar que faço parte do grupo de pessoas que, assistindo à cerimônia de abertura, não caiu em prantos, não achou a coisa mais linda desse mundo, não sentiu mais orgulho por ser brasileiro, não esqueceu seus problemas naquele instante e não saiu transbordando com “espírito olímpico”. Quanto a esse último ponto, vou dar uma passada numa loja licenciada pelo Comitê Olímpico Internacional, logo mais, para ver se compro um pouco e reponho.
O que, de certa forma, me torna um pária, neste sábado, pós-festança no Maracanã.
Teve muita coisa legal, claro. A escolha do maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima para acender a pira, alguém que ganhou apesar de perder – o que diz muito sobre o que deveria ser o esporte. E não tem como ver a Palestina entrar como uma delegação independente, empunhando sua bandeira, e passar incólume. Ou presenciar o time de atletas refugiados ser ovacionado – no que pese a mesma sociedade que aplaude, no dia seguinte, reclama de “haitiano que vem ao Brasil só para roubar nossos empregos”. Ou o Guga. E a Elza. E, é claro, o Gil. E, por fim, pena que Michel Temer não foi à abertura. Pelo menos, não ouvi ele sendo anunciado… (ok, enquanto houver resistência, vai haver figura de linguagem).
E não seria diferente porque foi escalado um time competente para organizar a abertura – time que, com um orçamento pequeno, fez milagre – que é uma palavra melhor que “jeitinho” ou “gambiarra”, termos que circularam para justificar o ajustes de última hora.
Sabemos fazer uma balada. E sabemos transformar uma grande balada num bom negócio. E transformar tudo em um grande elixir para esquecer, nem que seja por um momento, como a vida tem sido ruim. Afinal de contas, temos a experiência de mais de um século de carnaval.
E é bom que essas fugas aconteçam, para não enlouquecermos na racionalidade dura do dia a dia. Seria mais fácil se a maconha fosse legalizada e não apenas ansiolíticos de indústrias farmacêuticas, contudo isso é outra história.
Mas a mistura de bombardeio midiático, mais especificamente do poder da narrativa do pão e circo televisivo, em um evento que nos coloca por algumas horas como umbigo do mundo, ajuda a despertar um furor nacionalista, quiçá patriótico, em muita gente. E ai de quem não estiver feliz e radiante nesse momento em que, nós brasileiros, mostramos ao mundo finalmente quem somos. Criticar momentos de catarse é pedir para ser queimado na fogueira da rede social.
Por exemplo, foi importante a mensagem sobre a necessidade de frear as mudanças climáticas. O que ela não diz é que os próprios Jogos Olímpicos contribuem para esse processo, com extensas cadeias produtivas causando impactos ambientais e sociais a milhares de quilômetros do Rio e a falta de comprometimento de muitas empresas envolvidas direta ou indiretamente com o evento com padrões mínimos de sustentabilidade como mostraram estudos divulgados no último ano.
O discurso ambiental posto dessa forma torna-se mais um produto de entretenimento para consumo rápido, a fim de satisfazer nossas ansiedades e resolver nossas contradições. É como se emocionar ao assistir a Wall-E, a simpática animação que trata de um mundo que sofreu um apocalipse ambiental, e logo depois ir comprar os bonequinhos de plástico do robô protagonista da história. E, nós jornalistas, contribuímos com isso ao transmitir tudo de forma acrítica, sem lembrar que nem o governo, nem as empresas, nem a sociedade estão mudando seus hábitos na velocidade necessária para que cidades não sejam invadidas pelo mar nas próximas décadas. É como se tudo fosse culpa de aliens.
Na verdade, nem conseguimos entregar uma baía da Guanabara e uma lagoa Rodrigo de Freitas despoluídas para os jogos. Quiçá adotar uma mudança real em nosso modelo de desenvolvimento.
Modelo de desenvolvimento que segue transformando a vida de populações tradicionais um inferno. Mas tal como em todo 19 de abril, Dia do Índio, resgatamos sua imagem e a usamos para saudar nossa trajetória de harmonia e nossa democracia étnica. E sentimos orgulho em uma história que deveria, pelo contrário, provocar vergonha. E pedidos de desculpas públicos.
Perdoe-me se isso soa chato. Só que chato mesmo é tomar bala de fazendeiro no Mato Grosso do Sul. Ou ver seu rio secar para que Belo Monte possa funcionar. Ou ser queimado vivo em um ponto de ônibus de Brasília. Ou perceber que jovens negros e pobres seguem carregados para uma vida incerta e curta, tal como seus antepassados – roubados da África séculos atrás nas naus representadas na abertura.
É óbvio que ninguém está pedindo para colocar o Banksy como Mestre de Cerimônia. Seria o oposto do que se espera para um evento como esse, que deve ser altivo e inspirador. É um show. Como show cumpriu seu papel. E como show deve continuar.
E, é claro, que analisar a abertura, ao contrário do que afirmam algumas pessoas, não me desautoriza a ver os jogos pela TV. Vou acompanhar e torcer muito.
Mas isso não significa que a divulgação acrítica da história e da realidade do país deva ser o tom predominante em torno do que vemos e ouvimos nesta sexta (5). Essa tarefa não é de quem organizou a festa, mas nossa, de quem a assistiu.
Utilizar esses momentos também para refletir sobre o abismo entre a imagem de país que gostamos de vender ao mundo e o país que realmente somos é fundamental. Para que possamos aproximar desejo e realidade o máximo possível e tornar a efetivação da dignidade algo cotidiano.
Porque as Olimpíadas se vão. Mas o Brasil vai continuar o que era antes, de mãos dadas às suas contradições.