Por que deveríamos impulsionar o voto étnico

No sistema político institucional das democracias representativas, onde o voto é que compõe o governo, os grupos sub-representados tentem a não participar dos processos decisórios, além de não terem suas demandas atendidas por essas não serem de interesse dos grupos numérica e ideologicamente dominantes. É sabido que há uma grande sub-representação de pessoas não brancas na política brasileira, que aos poucos, em doses homeopáticas, tem diminuído. Entre 1983 e 1987 a porcentagem de negros que ocupavam o cargo de deputado federal era de 0,84%, em 2019 a câmara legislativa foi composta por 24,36% de negros. Apesar deste crescimento percentual, ainda há uma enorme discrepância entre o percentual de negros eleitos e o percentual desses no total da população brasileira (hoje representando 53% entre pretos e pardos).  A contradição de compor o maior número populacional, mas não encontrar representatividade nos espaços políticos só pode ser resolvida através da construção efetiva de vias de acesso da população negra para as demissões de poder econômico, social e político.

Só então, através da real representação, da democratização efetiva dos cargos de poder político, se dará a descentralização do poder político que historicamente está concentrado nas mãos de homens, brancos, abastados e com algum tipo de prestígio social, no momento em que de fato democratizarmos os espaços de decisão política institucional.  Para tal, seria preciso que os eleitores votassem em seus semelhantes em termos de interesses, pessoas não brancas, antagônicas ao padrão da elite política que há séculos tem instrumentalizado o Estado em seu favor. Daí surge a necessidade de uma maior perpetuação do voto étnico, algo comum em diversos grupos étnicos mas ainda pouco aderido pela população negra brasileira.  Por voto étnico se entende o processo de escolha política no qual a afiliação do candidato a um grupo étnico ou cultural predetermina o sufrágio dos eleitores identificados a este grupo. (BRAGA, NASCIMENTO, 2010) Há de se ponderar que, dar um voto baseado na cor não significa votar em um candidato somente pela identificação racial, e sim votar naquele que esteja disposto a representar os interesses do seu grupo de origem. Eleger um negro não é necessariamente igual a eleger um representante da luta antirracista, (o PSL ter sido o partido com o maior número de candidatos negros eleitos ao Congresso Nacional em 2018 é um demonstrativo) por outro lado, a luta antirracista tem maiores chances de sucesso quando negros ocupam lugar de poder político.   

Os parlamentares com o maior número de discursos e projetos de lei relacionados à questão racial são aqueles que têm alguma ligação com o movimento negro, alguns deles (como Abdias do Nascimento e Benedita da Silva) figuras históricas dentro deste movimento. Embora as pautas da questão racial não sejam somente de interesse dos deputados negros, no plano legislativo, são os parlamentares negros os maiores responsáveis pelos projetos de leis apresentados no congresso federal que visam o melhoramento da condição da população negra, comprovando a tese de que quanto maior a participação de negros no meio político, maior seria a produção de leis e políticas públicas de promoção de igualdade racial e eliminação do racismo nas vias institucionais.

Entre o governo de Eurico Dutra (1946) até o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011) houve no Congresso Nacional 194 projetos de leis que tinham a questão racial como tema. Dos nove legisladores com o maior número de projetos apresentados, seis são negros. Essas informações não evidenciam necessariamente que todos os parlamentares negros tenham interesses em representar o grupo racial ao qual pertencem, mas é possível reconhecer que as pautas e interesses relacionados à questão racial têm sido historicamente – a contar o longo período de tempo citado – apresentadas e defendidas por parlamentares pertencentes ao grupo racial ao qual representam.     

Mesmo que seja um dos mais importantes princípios democráticos, estabelecer equiparação entre representados e representantes não parece ser tarefa fácil.  Nas eleições de 1982, a primeira eleição direta para governadores e com sistema pluripartidário desde o golpe de 1964, os movimentos negros juntamente com PDT, PMDB e PT, se empenharam em apoiar candidaturas negras, mas o fracasso eleitoral – dos 54 candidatos só 2 se elegeram- criou uma descrença no voto étnico, tão apelado durante as campanhas¹. Esse  fracasso eleitoral dos candidatos negros aos cargos do legislativo é justificado por Castro (1992) pelo  desinteresse do eleitorado negro e pobre – que seriam os votos eminentes desses candidatos- pelas eleições,  da qual se abstinham em grande número. Todavia, há de se destacar o fato de que até 1985, quando entre em vigor a lei que autoriza analfabetos ao voto, o contingente de negros aptos a votar era muito pequeno se comparado ao total da população negra. 

 Em pesquisa comparativa, Berquó e Alencastro (1992) analisaram a presença ou não do voto étnico nas eleições de Celso Pitta a prefeitura de São Paulo, em 1997, e Albuíno Azeredo ao governo do Espírito Santo, em 1991. Em São Paulo, encontraram indícios da emergência do voto étnico nas periferias, no Espírito Santo não aconteceu o mesmo. Em números totais, apenas 10% dos votantes paulistas da amostragem responderam favoravelmente ao sufrágio em candidatos negros, enquanto 84,6% desconsideravam esse fator. A porcentagem de votantes capixabas aprovando a opção étnica foi quase igual a dos paulistas (9,5%). Nenhum deles, nem Pitta nem Azeredo, se colocaram enquanto candidatos negros durante suas campanhas eleitorais, o que é visto por alguns pesquisadores como um acerto, já que a racialização das campanhas políticas pode trazer mais ônus do que bônus aos candidatos ao executivo. 

Vários são os obstáculos entre indivíduos negros e o sucesso eleitoral. Podemos citar; menor interesse dos partidos na captação de indivíduos não brancos, pouco investimentos nas candidaturas e a falta de capital político. Adicional aos obstáculos materiais soma-se o fato de o Estado e suas instituições, desde a colonização do país, serem de difícil penetração á indivíduos não pertencentes aos tradicionais grupos de poder. A hegemonia branca nas instituições políticas cria um imaginário coletivo de que esse é o “normal”, status quo inalterável, causando o isolamento da atividade política da população negra que, subconscientemente,  se entende como não  agente das dinâmicas político institucionais. “Há um estereótipo sobre quem pode ser inteligente e competente, quem pode exercer o poder. No Brasil, são homens brancos e ricos que representam a face do poder”. (Benedita da Silva, 1997) Aprendemos que o lócus político não é socialmente predestinado às pessoas não brancas. 

A perpetuação da ideia de mestiçagem como identidade nacional e do mito da democracia racial, construído e perpetuado pelo Estado brasileiro tal qual uma lei, foi – e talvez ainda seja- a maior barreira que a população negra encontrou para a legitimação de suas reivindicações por reparações. Ao negar que exista uma maior facilidade de um grupo racial em acessar recursos e posições de prestigio econômico e social, em detrimento de outro grupo, que fica subordinado dentro de uma superestrutura social e econômica, o Estado não só compactua com o racismo como o promove. Como superar o racismo quando se quer se assume a sua existência? 

Mitchell, em pesquisas feita em 2006 nas cidades de Salvador e São Pauloexamina a relação entre identificação com um grupo racial e o voto em políticos negros. A autora constatou que, pessoas que se identificam como negras tendem a votar em políticos negros mais do que aquelas que se identificam com tons de peles mais claras. “[…] o que é de fato mais revelador é que um afro-brasileiro que se identifica como negro (seja preto ou negro) é mais do que uma vez e meia mais propenso a votar em candidatos negros do que afro-brasileiros que se identificam como brancos. (MITCHELL, 2009, p.294). Outro fator observado é que quanto maior o grau de instrução e renda, maior é a propensão ao voto étnico. Enquanto, os entrevistados na pesquisa, com educação de 1 a 3 anos de estudo e renda baixa têm 38% de propensão a votarem em um candidato negro, os com nível superior e melhor nível de renda, apresentam uma propensão de 67%. Esta amostragem vai ao encontro com o que Alencastro e Berquó já haviam indicado em pesquisa de 1992 realizada na cidade de São Paulo; “[…] em São Paulo os morenos e os que não consideram a cor importante estão mais próximos dos brancos do que dos mulatos e negros” (BERQUÓ, ALENCASTRO, 1992, p.85). Têm se observado que as políticas de ações afirmativas impulsionaram os mais jovens a se identificarem como negros e assumirem sua negritude, por trazer um sentido positivo nesta identificação,  isso acarreta em um maior sentimento de pertencimento dentro de uma coletividade de semelhantes, o que pode aumentar a possibilidade dos negros que ingressam a universidade por meio das cotas raciais a votarem em candidatos negros.

A educação, melhora da renda e a valorização de uma identidade racial negra -em contraposição a uma identidade mestiça que é evocada genericamente no Brasil- aparecem como vias para construção de um maior engajamento em futuras candidaturas negras. Nenhuma mudança é fácil quando se trata de uma estrutura existente há séculos, mas enquanto o povo negro ocupar os piores índices dos medidores sociais, a luta e a busca pela ocupação de espaços de poder deve ser tratada com urgência. 


¹  Neste pleito valeu o “voto vinculado”, ou seja: o eleitor tinha que votar em governador, deputado federal, estadual e vereador do mesmo partido. Acabaram tendo vantagens os candidatos vinculados a base governista.

REFERÊNCIAS: 

BERQUÓ, Elza e Alencastro. A emergência do voto negro. Novos Estudos Cebrap, nº 33, pp.77-88. 1992.

CASTRO, Mônica M. M. de. (1992) Raça e comportamento político. Dados, Rio de Janeiro, 36(3): 469-491.

MITCHELL, Gladys. Identidade coletiva negra e escolha eleitoral no Brasil. , , v. 15, n. 2, p. 273-305, . <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762009000200001&lng=e&nrm=iso>. 06 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-6276200900020000

MONTEIRO, Ana Júlia França. Espaço público no Brasil: questão racial e os desafios para o diálogo na arena política. 2014. 50 f., il. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Ciência Política)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.NASCIMENTO, Adilson; BRAGA, Alexandre. Negros estão fora do parlamento brasileiro: balanço eleitoral do voto étnico negro presença dos negros no parlamento. Revista África e Africanidades – Ano 2 – n. 8, 2010.

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