Marília Mendonça sonhou que fazia shows gratuitos em praças nas capitais do Brasil. Inventou, então, surpresas em locais públicos de 27 cidades. Mantinha sigilo sobre o lugar do show até o dia do evento, quando saía com a equipe panfletando pelas ruas, em lugares populares, as informações para o encontro que aconteceria naquela noite.
A ideia ousada resultou no DVD do álbum “Todos os Cantos”, lançado em fevereiro de 2019. Essa turnê foi um retrato fiel de quem era Marília: uma mulher extremamente generosa, consciente do carinho que mobiliza do público e, por isso, muito grata. Foi para retribuir esse afeto que ela tornou o sonho realidade.
Marília tinha apreço pela simplicidade e respeito pelo outro, algo que andamos perdendo nos últimos anos. Sua postura de mulher que encara de frente as desilusões amorosas, as tristezas da vida que todas nós passamos em algum momento ou estamos sujeitas a passar é revolucionária. Ela trouxe para suas letras o ponto de vista da mulher em um ambiente dominado por homens, como é historicamente a música sertaneja. Com isso, impôs respeito sobre sentimentos das mulheres.
O “feminejo” entrou para a música popular brasileira em 2016. “Infiel” foi um dos primeiros sucessos na voz de Marília, que também compôs a letra. A música desafia o infiel a morar em um motel quando a traição é descoberta. Quem nunca teve um desejo semelhante? Em “Ciumeira”, de 2018, Marília interpreta a história da mulher que é amante e tem de tolerar dividir seu amor com outra boca e outro corpo, vivendo em constante ciúme. “Todo mundo vai sofrer”, de 2019, evoca a mesa de bar para curar as dores de amor. A música tem mais de 390 milhões de visualizações no youtube. Marília era um fenômeno.
Suas letras discutem as relações. Colocam o copo de cerveja, tradicionalmente associado ao comportamento masculino, como meio para o desabafo, a revolta e a volta por cima. O jeito de Marília, tirando onda da própria tristeza, com humor, brincando com a bebida no palco, como em “Bebaça”, e entre amigos, aproximou a artista das mulheres. “Ressaca é o meu estado natural da vida. O melhor remédio é beber de novo”, disse, em uma apresentação.
Escutar Marília Mendonça é como trocar ideias com uma amiga íntima. É se entender amparada e acolhida. É acalmar a solidão. Por isso, o coro em seus shows era feito sobretudo de vozes femininas. O jeito de viver de Marília foi libertador para as mulheres. Ela nomeou angústias, igualou posição com os homens nos relacionamentos amorosos e deu legitimidade aos sentimentos.
Mais de 100 mil pessoas foram se despedir da cantora e compositora em Goiânia. Sua voz é a mais ouvida do Brasil.
Perder alguém como Marília faz o país dar um mergulho mais profundo no nosso já prolongado luto — luto no Brasil é uma espiral em que parecemos estar presos, sucessões de tragédias. Ao mesmo tempo, sua obra é tão transformadora que sua memória tem de ser honrada, preservada, multiplicada e tratada com o mesmo respeito que ela tinha pelas pessoas.
Nós é que somos gratos, Marília Mendonça. Obrigada.