Sacrifício de vidas, qual a diferença? A pergunta foi feita de forma inusitada nesta terça-feira (07) aos que passavam pelo Largo Glênio Peres, em Porto Alegre. Seminus, amarrados ao chão, sujos de sangue e cobertos por pipocas e velas, ativistas defensores de animais simbolizaram uma oferenda humana. O grupo protestou contra os rituais de sacrifício praticados nas religiões de matriz africana. O debate foi aberto no estado por conta do Projeto de Lei 21/2015 da deputada Regina Becker Fortunati (PDT) que prevê a proibição dos rituais dos povos de terreiro. O texto quase foi rejeitado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) nesta manhã, mas o pedido de vista do deputado Diógenes Basegio (PDT) postergou a decisão para a próxima semana.
Do Sul 21
Durante a sessão, acompanhada por dezenas de religiosos de matriz africana, dez deputados chegaram a declarar seus votos apontando para a inconstitucionalidade do texto. Apenas o relator da matéria, deputado Gabriel Souza (PMDB) teve entendimento diferente. No entanto, a causa não foi ganha pelos povos de terreiros que lotaram dentro e fora da Assembleia pelo pedido do deputado Basegio, líder da bancada do PDT.
“Consideramos que tivemos uma vitória pela mobilização que fizemos. Mas tivemos um traidor do povo. O deputado Basegio. Aquele que vai ao axé, que bota fitinha no pulso, que vai ao mercado bater folha ou que vai no dia 2 de fevereiro levar florzinha pra Iemanjá não pode trair seu povo. Ele quis agradar uma deputada que não merece o título de parlamentar. Em um contexto político que vivemos de crescente intolerância esta deputada consegue instalar o ódio religioso no RS. Ela retoma um processo discriminador, intolerante e racista”, disse a representante do Conselho Estadual de Povos de Terreiro, Mãe Vera Soares.
“O racismo está instituído nas Assembleias Legislativas”
O Rio Grande do Sul possuiu 60 mil terreiros e aproximadamente 600 mil pessoas praticantes das religiões de matriz africana. De acordo com a representante do Fórum Nacional de Povo de Tradições de Matriz Africana, Regina Nogueira, a resistência dos descendentes desta tradição é nacional. “Em São Paulo acabamos de derrubar um projeto semelhante ao do RS. O racismo está instituído nas Assembleias Legislativas. Mas nós temos o direito de nos alimentarmos da nossa fé de uma forma diferente. Não cometemos maus tratos e não defendemos a vitela, por exemplo, que todo gaúcho gosta e significa prender um carneiro numa gaiola pra deixar a carne mais clara”, compara.
O abate bovino, suíno e ovinos no Brasil vem batendo recordes nos últimos anos. Conforme dados do IBGE, foram 34,4 milhões de cabeças abatidas em 2013. Deste percentual, 65,1% corresponde a região Sul do país. “Eu nunca vi este pessoal protestar em frente aos matadouros ou aqui mesmo no Largo Glênio Peres em que tivemos agora apouco a Feira do Peixe”, questionou o estudante Guilardo Silveira , presente ao ato contra o sacrifício de animais.
Ele ficou impressionado com a cena representada pelos ativistas e é contra o PL 21/2015. “Eu acho errado existir um projeto de lei para tentar mudar uma cultura. A religião africana faz parte da cultura do país, somos descendentes dos africanos. Não fazem nenhuma proposta pra mudar a cultura do gaúcho que se alimenta de churrasco. Quer dizer que contra cultura negra pode, contra a cultura branca que impera na produção de gado não?”, indagou.
‘Oferte amor, não sangue’
O grupo de ativistas em defesa dos animais se autodefine como independentes e veganos (filosofia de vida que não consome animais ou qualquer produto de origem animal). Entre eles estavam uma gaúcha radicada na França e um francês, militantes em campanhas internacionais de Peta (People for the Ethical Treatment of Animals) e Sea Shepherd Conservation Society.
“Oferte amor e não sangue” e “Sacrificar crianças também já foi parte da cultura e tradição” eram as palavras destacadas nos cartazes empunhados por eles durante duas horas de intervenção no Centro de Porto Alegre. Muitos curiosos paravam para ler as frases, tirar fotos ou tentar identificar o que significava o ato. “Não acreditei quando vi. Mas não concordo com esta descaracterização da minha religião”, disse a auxiliar de serviços gerais, Sandra Susete.
‘Idiota’, ‘Sinistro’ e outras interjeições eram feitas por alguns que olhavam e minutos depois saiam do local do protesto. Alguns chegaram a confundir os manifestantes com cadáveres. “Eles estão mortos?”, perguntou uma mulher muito impactada.
“Estão tentando transformar um ato de proteção aos animais com um ato de intolerância religiosa e não é isso. Eu, por exemplo, sou simpatizante de umbanda, sou filha de Oxum, não tenho preconceito com isso. Mas não é uma questão humana aqui, é o sacrifício de animais. Vidas morrem em nome de um Deus. Somos contra todo tipo de exploração animal”, defende a ativista Luzia Goulart.
“Estão repetindo o que fizeram há 500 anos quando retiraram a identidade do povo que tem nos orixás o único elo com a mãe África. Só o racismo pode ter motivado um projeto que cita apenas os povos de terreiro. Nós não somos religião, somo tradição milenar e ela não tem o direito de ferir este princípio que habita dentro de mim e no meu povo. Mas com a força do orixá, não vai vencer. Seguiremos mobilizados”, diz Mãe Vera Soares.
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