Precisamos criar já o Fundo Nacional de Combate ao Racismo

O Brasil está vivendo um momento singular: cresce, dia a dia, o número de pessoas que se engajam na defesa de causas sociais que vão desde a defesa do meio ambiente, o uso consciente dos recursos hídricos, até a promoção dos direitos humanos, o que inclui as questões de gênero e um vigoroso redirecionamento na luta contra toda forma de discriminação racial e suas perversas consequências para a autoestima de populações historicamente vulneráveis.

É como se tivéssemos passado tempo demais atento a posturas comportamentais ditadas pelo espírito do politicamente correto. Essa forma de proceder em sociedade tem sido exitosa em ocultar visões deformadas sobre a real natureza humana, concedem um fugaz verniz de civilidade a ocultar pensamentos, gestos, atitudes e ações eivadas de discriminações raciais.

E, assim meio que de repente, vemos irromper na superfície da sociedade selvagens atos de irracionalidade.

Atos públicos – e também privados – colocam em evidência um dos mais cruéis tipos de racismo – aquele enrustido, abafado que é desde as páginas de nossos livros escolares, e que se esconde intenta se perpetuar sob a fina capa da invisibilidade social, como que a proclamar sua não existência e que, no limite, se revela em todo seu cinismo como discriminação racial enraizada no próprio coração da sociedade brasileira.

Passamos do estágio do reconhecimento que o racismo, além de criminoso, existe e vige em diversas instâncias de nossas estruturas sociais.

Prova disso é que não se passa um dia sequer sem que algum veículo de comunicação divulgue ato explícito de racismo – mas a grande mídia somente trata de divulgar o tema quando este é tão chamativo que logo ao se tomar conhecimento se levante o necessário clamor público.

A discriminação racial que não sai na imprensa é a do tipo mais corriqueira – negros proibidos de ingressar em shoppings e edifícios de alto luxo, negros intimidados ao adentrar em certos clubes sociais em que se reúne aquele pequeno contingente da sociedade que ostenta riqueza que causaria vergonha a tradicionais famílias de banqueiros europeus e a chefes dos chamados “petropotentados”

Também integra o cordão de isolamento midiático as inconvenientes estatísticas oficiais dando conta da discriminação racial no mercado de trabalho e o perverso e sempre imenso número de vítimas de homicídios, em particular, vítimas da própria violência policial nos grandes centros urbanos do Brasil.

O que ainda nos desafia é esse não reconhecimento que o racismo precisa ser combatido noite e dia, hora a hora, momento a momento – é que ele permeia as relações sociais, se manifestam de uma hora para outra de forma tão solene quanto o aparecimento de uma sólida catedral gótica.

E são essas espécies de catedrais de preconceitos acumulados no leito dos séculos que alojados em nosso inconsciente coletivo precisam ser urgentemente demolidas, extirpadas de nosso imaginário.

O racismo, qual persistente carga negativa, nos faz recordar que é ainda bastante longa a caminhada que precisamos trilhar para o estabelecimento da justiça no mundo.

EM BUSCA DAS RAÇAS

Mas, teremos algum tipo de atenuante por portarmos atitudes racistas? Somos mesmos de diferentes raças e dentre estas existiriam gradações entre raças superiores e inferiores?

Antes de tudo devemos ter em consideração que a ciência tem buscado exaustivamente definir as raças que compõem nossa espécie.

Após reconhecer que medir o diâmetro de crânios, braços, pés constituía uma trabalho muito complicado para a definição de uma raça, com o progresso da genética os antropólogos observaram que através de algumas gotas de sangue era possível referenciar as coleções de genes, mas chegaram à conclusão que existem quatro grupos sanguíneos e esses quatro grupos se encontram em todo e qualquer grupo racial.

Posteriormente foram definidos outros sistemas: Rhesus, MNSs, Duffy, Diego, GM e ainda o HL-A. Utilizando todos esses sistemas, cientistas concluíram que devido a multiplicidade de informações recolhidas a classificação em grupos homogêneos tornava-se extremamente difícil.

A opção então recaiu para o método estatístico, segundo os genes que são específicos de cada grupo. Chegamos ao ponto: Sendo a cor negra característica da raça negra, buscou-se então os genes “marcadores” responsáveis pela cor da pele. Os resultados foram também decepcionantes: os genes não são específicos a uma ou duas raças e as conclusões apontaram para o fato de que todas as populações têm mais ou menos os mesmos genes.

DISTÂNCIA GENÉTICA

Chegam então os biólogos e imaginam uma medida chamada “distância genética”. Esta distância é tanto maior quanto maior for a diferença entre os patrimônios genéticos de duas ou mais populações comparadas.

A conclusão é clara: a humanidade não pode ser classificada em raças pela simples comparação dos patrimônios genéticos, chegando François Jacob, prêmio Nobel de Biologia a afirmar categoricamente:

“O conceito de raça é, para nossa espécie, não operacional.” Jacob não fica solitário nessa declaração. O duplamente premiado com o Nobel de Medicina e de Psicologia, Jean Dausset declara que “a ideia de “raça pura” é um contrassenso biológico.”

Se considerarmos a afirmação de muitos expoentes da ciência, de que não existem raças, no entanto, temos que conviver com este pernicioso defeito de nossa civilização: o racismo existe!

É patético então encontrar alguém racista, se não existem meios científicos que elabore a distinção de raças?

O geneticista e escritor francês, Albert Jacquard afirma que “na verdade, temos medo do desconhecido, de encontrar alguém que não seja nosso semelhante, este medo, por sua vez, transforma-se em agressividade e ódio e assim nasce o racismo.”

Fruto do medo e do ódio aos que achamos ser nossos “dessemelhantes”.

E a cada vitória do medo e do ódio corresponde uma derrota para a Humanidade como um todo.

Mas o mundo, queiramos ou não, encontra-se francamente direcionado para o resgate dos direitos humanos e da unidade racial dentro de um contexto amplo enunciado em meados do século passado: a Unidade do Gênero Humano.

SEM PRETEXTO

O preconceito racial é algo que merece uma ampla reflexão sobre suas origens mais remotas, sempre adquiridas ao longo do tempo pelo sistema de valores reinantes em cada época.

Vejamos a história do Brasil: índios e negros são escravizados para produzir riquezas para o dominador. Tanto negros quanto índios eram considerados inferiores, como seres dotados de baixo nível de inteligência, e isso concedia aos seus “senhores” uma motivação moral para mantê-los no regime escravista.

Como Sartre bem definiu “o racismo é um estado de espírito patológico, uma forma de irracionalidade, um tipo de epidemia.”

Em 1986, em importante documento da Casa Universal de Justiça, ficou afirmado que “o racismo, um dos males mais funestos e mais persistentes, constitui obstáculo importante no caminho da paz” e que sua prática “constitui uma violação demasiado ultrajante da dignidade do ser humano para poder ser tolerada sob qualquer pretexto.”

Ressalto duas questões de uma pesquisa realizada pela antropóloga Lilia Schwarcz, autora de “O Espetáculo das Raças”:

(1) Você é preconceituoso? 99% responderam “não” e

(2) Você conhece alguém preconceituoso? 98% responderam “sim”.

O que pode levar alguém a ser superior, parece-me razoável, seria a capacidade desse alguém de praticar o bem, levar avante o progresso da civilização e possuir uma conduta digna e louvável, capaz de não apenas tolerar mas antes saber apreciar a imensa diversidade humana e não se sentir superior devido à cor da pele ou aos contornos do mapa de sua engenharia genética.

FUNDO NACIONAL DE COMBATE AO RACISMO

Nesse estágio atual temos o formidável êxito das ações afirmativas que trouxeram inadiável diversidade racial aos bancos de universidades e do ensino superior em todas as partes do Brasil. Mas, ainda é pouco se considerarmos a dívida que temos com o grande contingente de afrodescendentes brasileiros.

Enquanto faço esta reflexão, saúdo com total apoio o engajamento de dezenas de entidades da sociedade civil, incluindo religiões e partidos políticos, para angariar quase 1,5 milhão de assinaturas para levar avante projeto de lei de iniciativa popular a ser apresentado ao Congresso Nacional e que, em sua essência, cria o Fundo Nacional de Combate ao Racismo (FNCR). A Comunidade Bahá´í do Brasil, da qual faço parte, está mergulhada de corpo e alma na coleta das necessárias assinaturas.

Importante destacar que, segundo a Constituição, um projeto de iniciativa popular precisa receber a assinatura de pelo menos 1% dos eleitores brasileiros – cerca de 1,4 milhão de assinaturas – divididos entre cinco estados, com não menos de 0,3% do eleitorado de cada estado. A assinatura de cada eleitor deverá ser acompanhada de nome completo, endereço e número completo do título eleitoral – com zona e seção — e as listas de assinatura devem ser organizadas por município e por estado, de acordo com formulário. Veja aqui.

Uma vez aprovado o projeto de lei, os recursos oriundos do pagamento de penas de multas de crimes raciais, doações orçamentárias específicas, doações de pessoas físicas, de organismos nacionais e internacionais e de outras fontes especificadas serão aplicados num fundo patrimonial que, então, tornará possível o custeio da política de promoção da igualdade racial.

O projeto prevê também que o fundo será administrado por um comitê gestor criado especificamente para administrar os recursos, composto de forma paritária por representantes do governo e da sociedade civil.

A realidade é que precisamos ultrapassar o importante estágio de produção legislativa criminalizando – e penalizando cada vez mais – autores de condutas racistas.

Os recursos governamentais destinados às Políticas de Promoção da Igualdade Racial devem alcançar um patamar à altura dos desafios presentes hoje no Brasil.

Estes desafios incluem a promoção de pesquisas e estudos sobre os males da discriminação racial, produção de material didático para ensino nas escolas e universidades sobre a erradicação do racismo da sociedade brasileira, realização de eventos e campanhas de conscientização sobre os males do racismo e o apreço à rica diversidade humana de que somos todos herdeiros.

O déficit do Brasil na luta pela igualdade racial e que impede a implementação das políticas de promoção da igualdade racial é gigantesco e tem nome: a falta ou o contingenciamento de recursos orçamentários.

É por isso que, – com mais outras 1844 razões – defendemos a criação do FNCR.

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