Precisamos falar sobre as mulheres negras em ‘Coringa’

Existe alguma razão para que quase todas as mulheres com quem o Coringa interage sejam negras?

Por B Zeba Blay, HuffPost  Brasil 

WARNER BROS
Zazie Beetz no papel de Sophie Dumond em Coringa

Aviso: contém spoilers sobre Coringa.

Coringa é um filme brutal. Isso não é um julgamento: existem filmes “brutais” de sobra que são bons. E Coringa é bom na medida em que é filmado com competência, que o trabalho dos atores é exímio e que o filme acerta em todos os quesitos necessários para um trabalho como este, tão fortemente influenciado pelos filmes de Scorsese dos anos 1970.

A brutalidade é uma escolha estética intencional do filme, uma estética que o ajuda a alcançar seu objetivo principal: criar um tom e uma atmosfera tão opressivo que não sobra espaço para a história ou o público respirarem. É uma pena porque, por mais que trate da disparidade de classes sociais, do sofrimento provocado pela doença mental e da indiferença brutal generalizada da sociedade, Coringa não parece estar realmente interessado em explorar esses temas, exceto por usá-los como artifícios para a criação de uma atmosfera.

É especialmente relevante quando se trata da presença de mulheres negras no mundo do Coringa, uma presença tão gritante, mas ao mesmo tempo tão sutil, que quase passa despercebida. Vemos o Coringa, ou Arthur Fleck (representado com maestria por Joaquin Phoenix) interagir com seis mulheres ao longo do filme. Uma delas é uma produtora de TV com quem ele fala rapidamente ao telefone. Outra é sua mãe, mentalmente instável e que Coringa descobre que mentiu para ele sua vida inteira. As quatro mulheres restantes são todas negras: uma mãe no ônibus, a assistente social que o atende, sua vizinha Sophie (Zazie Beetz), por quem ele está apaixonado, e uma psiquiatra no hospital mental.

Essas personagens não são individualmente surpreendentes. Coletivamente, porém, a presença delas me levou a questionar se existe uma razão por que a maioria das mulheres com quem Arthur interage na tela são negras. Todas as interações de Arthur com mulheres são tensas e carregadas; cada uma delas reforça sua visão do mundo como sendo uma paisagem infernal, fria e apática. Quando ele brinca com uma criancinha no ônibus e a faz rir, a mãe da criança se vira para ele e diz, irritada, “faça o favor de parar de incomodar meu filho”. A assistente social que trabalha com ele é fria, indiferente e repreende Arthur. Em dado momento ele a critica por nunca ouvir realmente nada do que ele diz.

Seria fácil dizer que as escolhas do filme em matéria de mulheres negras são intencionalmente negativas, reforçando estereótipos lamentavelmente familiares de mulheres negras como sendo revoltadas ou frias. Mas não acho que essa seja necessariamente uma distinção justa. As personagens femininas negras não parecem inseridas na trama à força – elas estão naturalmente e organicamente presentes no mundo que Arthur habita, e não há maquinações estranhas que antecedam essas interações. De fato, apesar de o filme não deixar isso claro, o roteiro original de Coringa afirma explicitamente que Arthur vive num bairro de maioria negra.

Mesmo assim, vale prestar atenção à presença de mulheres negras no filme e ao tratamento dado a elas, em particular à personagem de Beetz, especialmente pelo fato de o roteirista e diretor Todd Phillips ter citado dois trabalhos de Martin Scorsese, O Rei da Comédia e Taxi Driver, como inspirações desta versão da história sobre a origem do Coringa.

Em Taxi Driver, o racismo e a misoginia de Travis Bickle são traços implícitos de sua personalidade. Nós os vemos no modo como ele avalia os grupos de homens negros com quem ele se depara na rua e no prazer evidente com quem ele mata um negro que assalta uma loja de bebidas. Vale destacar que o cafetão encarnado por Harvey Keitel estava previsto originalmente para ser representado por um ator negro. Todos os criminosos que Bickle mata no massacre final do filme estavam previstos para ser negros, deixando claro o racismo dele, mas executivos do estúdio decretaram que esse detalhe fosse mudado, temendo que o filme desencadeasse revoltas.

No caso de Coringa, houve comentários semelhantes sobre a possibilidade de o filme incitar violência ou alimentar a ideologia da cultura dos “incels” (celibatários involuntários – homens que têm raiva de mulheres porque não conseguem relacionar-se com nenhuma). É verdade que Taxi Driver, ao qual Coringa faz referências frequentes, não provocou revoltas públicas. Mas Taxi Driver é um filme mais inteligente que Coringa, que, como a escritora Sarah Hagi destacou no Twitter, poderia igualmente bem ser intitulado Vivemos numa sociedade – o filme. Em outras palavras, Coringa simplesmente não possui a mesma abrangência.

Enquanto Taxi Driver deixa claro que o desejo de Travis Bickle de eliminar a “escória” das ruas não é uma cruzada nobre, mas fruto de seus próprios preconceitos e neuroses egocêntricos, Coringa não mergulha suficientemente fundo – não vai além de criticar um “sistema” arbitrário e nebuloso.

Há um momento fugaz e promissor no filme em que a assistente social informa Arthur que o financiamento para seu atendimento foi cortado e que ela não vai mais atendê-lo. Ela faz um comentário, algo tipo “eles [as pessoas no comando do sistema] não se importam como pessoas como você e eu”. Mas a frase fica mais ou menos largada no ar; não temos a impressão de que Arthur realmente entendeu (ou seja capaz de entender) a ideia de que ele não é a única peça anônima nessa grande engrenagem indiferente. Em vez de ser uma crítica dos abusos institucionais, o diálogo parece mais uma crítica à pessoa individual por não entendê-lo, com isso justificando seu ódio e sua violência.

Um pouco como Taxi Driver e sua montagem final ambígua, o importante a lembrar em relação a Coringa é que a história é relatada especificamente e intencionalmente a partir do ponto de vista do personagem principal. No terceiro ato o espectador descobre que o romance nascente que vimos desabrochar entre Arthur e Sophie aconteceu apenas na cabeça de Arthur. Ele invade o apartamento dela sem ser anunciado, e Sophie, assustada, lhe implora para sair.

O filme corta diretamente para a cena seguinte, sem mostrar o que aconteceu com Sophie. A ambiguidade do destino dela é de certo modo emblemática da ambiguidade com que este filme trata da questão do gênero e da raça. Ela também põe em dúvida todo o resto que vimos até este ponto: os executivos idiotas que o Coringa mata logo no início do filme, sua mãe dominadora, a crueldade de Thomas Wayne. O ardil de Coringa consiste em nos apresentar a versão enviesada que Arthur tem do mundo como sendo a verdadeira e então, no último instante, nos forçar a questionar nossa empatia com ele. Ou essa é a ideia, pelo menos.

É por isso que as interações de Arthur com mulheres negras são interessantes, especialmente sua paixão por Sophie. Se mulheres negras exercem papéis de autoridade alienante em seu cotidiano, é significativo o fato de ele projetar uma fantasia romântica sobre uma mulher negra, enxergando-a como a figura feminina receptiva e solidária que ele nunca teve na vida.

Vale a pena pensar sobre tudo isso, especialmente em um filme que parece estar tentando (mas, em última análise, não consegue) fazer algum tipo de comentário sobre a disparidade entre pessoas ricas e bem-sucedidas e pessoas marginalizadas. Uma leitura racial deste filme talvez seja a última coisa que Phillips – que lamentou recentemente que a cultura dita “conscientizada” acabou com seu desejo de fazer comédias – queira que o espectador leve para casa. Mas não é possível ter uma discussão sobre classe social sem incluir em algum lugar uma discussão sobre raça. Duvido que Phillips tenha tentado fazer qualquer tipo de comentário intencional sobre sua colocação de mulheres negras em posições de autoridade antagônica ou de obsessão romântica ilusória, mas é isso que torna essas personagens tão importantes, por mais arbitrárias elas possam parecer.

*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.

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