Inspirado em Marielle Franco, programa quer transformar mulheres negras em líderes

Patrocinado por entidades como a Fundação Kellogg e o Instituto Ibirapitanga, Fundo Baobá vai distribuir bolsas de R$ 40 mil para capacitar 60 mulheres negras em todo o país

Por Rafael Gregorio, do Valor Investe

Divulgação

Nos dias que se seguiram ao assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio de Janeiro, em março de 2018, uma entre muitas frases de resistência repercutiu mais forte:

“Quiseram te enterrar, mas não sabiam que eras semente”.

Ou, como a citou Anielle Franco, irmã de Marielle, em artigo publicado no jornal “O Globo” dois meses após a morte da socióloga nascida no Complexo da Maré, conhecida pela defesa dos direitos humanos e uma das raras negras no Legislativo:

“Que a semente Marielle caia em terra fértil, e assim nasçam muitas outras Marielles.”

Pois a depender do Fundo Baobá, hão de nascer ao menos mais 60 delas no próximo ano e meio.

A entidade está em busca de candidatas para seu “Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco”, fruto de parceria com as Fundações Kellogg, Ford e Open Society, dos Estados Unidos, e o brasileiro Instituto Ibirapitanga.

Lançada em setembro, a iniciativa é o maior investimento social do Fundo Baobá, criado em 2011 e o primeiro – e, até aqui, o único – no país dedicado exclusivamente à promoção de equidade racial.

As inscrições para as interessadas vão até amanhã, sexta-feira (18/10), e até 25/10 para organizações e coletivos.

Excetuados impedimentos, como projetos religiosos, ligados a partidos políticos ou com fins lucrativos, o perfil das candidatas pode ser amplo.

Desde que residentes no Brasil, estão aptas negras de atuação ativista ou técnica, cis ou trans, de áreas urbanas ou rurais, de qualquer idade a partir de 18 anos e de escolaridade e religião diversas.

Para concorrerem, elas devem apresentar documentos, currículo e vídeos descrevendo seus objetivos e as propostas de estudos para atingi-los.

O processo seletivo terá três fases. Os resultados saem em dezembro, e o fomento começa em 2020.

As 60 mulheres aprovadas receberão bolsa de aproximadamente R$ 40 mil durante 18 meses. O objetivo é fazer delas lideranças em suas comunidades e, por que não, em âmbito nacional.

Também serão beneficiados com R$ 170 mil coletivos e entidades dedicados a combater a desigualdade racial no Brasil, manifesta em números – de fontes como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério da Justiça – à prova de ideologias:

  • negros (pretos e pardos) são 54% da população, mas são 17% dos mais ricos e 73% dos mais pobres;
  • negros têm evasão escolar 30% maior que os brancos, são 70% das vítimas de mortes violentas, 75% dos mortos por policiais e mais de 64% entre os quase 800 mil presos no país;
  • a taxa de conclusão de ensino superior é de 26,5 para mil entre homens brancos, contra 31,6/mil entre mulheres brancas, 9,4/mil entre homens negros e 14,6/mil entre mulheres negras;
  • negras com doutorado são 3% dos docentes da pós-graduação, contra 19% entre as brancas;
  • negras têm salário 49% menor que o de homens brancos.

Uma resposta contundente

“Naquele momento de dor [após o assassinato de Marielle], era fundamental uma resposta contundente. A nossa foi contribuir para que mulheres negras tenham mais oportunidades de ocupar espaços de liderança na política, no mercado financeiro, nas empresas; onde elas quiserem.”

A definição é de Selma Moreira, diretora executiva do Fundo Baobá.

Para atingir esses objetivos, não há fórmulas prontas, ela explica; os currículos serão desenvolvidos com base nas qualificações e demandas das pessoas aprovadas.

“Do que uma liderança precisa? Coaching, gestão, falar inglês, participar de um congresso no exterior? Vamos proporcionar. Você quer trabalhar na ONU? Vamos fazer acontecer.”

A ideia é replicar – ou ao menos tornar mais viáveis – histórias como a da própria Selma.

Selma Moreira, diretora executiva do Fundo Baobá — Foto: Divulgação

A administradora nascida em Osasco (SP) começou a trabalhar cedo, no Walmart, como empacotadora. Ficou 13 anos na rede de supermercados e, promoção após promoção, tornou-se gerente de responsabilidade social.

“Fiz faculdade e fui para a área jurídica. Aprendi inglês, fiz um MBA. Foi um período muito importante.”

Após deixar a empresa e trabalhar em uma consultoria de cooperativas populares em um projeto da Fundação Getulio Vargas (FGV), foi para o Baobá, em 2014.

“Mudei de lugar na mesa: eu era a pessoa que tinha dinheiro [para doar a projetos], e passei a ser a que pede. Isso sempre foi difícil, mas, no cenário atual, com tanta polaridade, é preciso aprimorar ainda mais o diálogo.”

A ideia, ela diz, é mudar o resultado do que ela chama de “teste do pescoço”:

“Quando chegar em um novo espaço, levante a cabeça e observe. A depender do ambiente, você não verá ninguém negro”.

Mais do que enxugar gelo

A busca por igualdade racial se escora em uma tradição secular, desde quando negros libertados se uniam em irmandades para ajudar escravos a comprarem cartas de alforria – história contada no livro “Memórias do Baobá: Raízes e Sementes na Luta por Equidade Racial no Brasil” (2015, Kitabu Editora, 144 págs.).

Já a organização social Baobá tem história mais recente. Nasceu em 2011, com foco em igualdade, educação e desenvolvimento, e como um legado das décadas de filantropia da Fundação Kellogg.

Fundado em Recife, mudou-se em julho para São Paulo, onde mantém um escritório na região central.

“A Kellogg avaliou os investimentos feitos desde que chegou ao país, nos anos 1930, e percebeu que estava enxugando gelo, pois permanecia uma fatia da população com indicadores de miséria acirrados”, diz Selma.

Surgiu a ideia de um fundo patrimonial filantrópico – o “endowment fund”, popular nos EUA e na Europa. Sua função é fomentar doações pré-direcionadas e de longo prazo, imunes a flutuações econômicas e políticas.

Até aqui, já foram captados US$ 7 milhões, e, segundo Selma, há outros US$ 4 milhões comprometidos. O desafio, agora, é ampliar esse montante para receber o valor prometido pela Kellogg.

Funciona assim: para cada US$ 1 de doador estrangeiro, a Kellogg acrescenta mais US$ 2. E, para cada R$ 1 doado por brasileiros, a entidade soma mais R$ 3. A diferença no “peso” da contrapartida se explica pelo fomento à cultura de doações no Brasil, diz Selma.

A ideia é que um dia, a se concretizarem os planos da equipe do Baobá – cinco mulheres, todas negras –, o total salte dos atuais US$ 11 milhões (R$ 45,8 milhões) para US$ 25 milhões (R$ 104 milhões).

“Com essa arrecadação”, diz Selma, “a gente se tornaria o maior fundo para equidade racial fora dos EUA”.

O foco da atuação é o Nordeste do país, que tem os maiores contingentes de jovens e mulheres negras e, até aqui, recebeu 44% dos recursos da entidade – entre 2011 e 2018, foram R$ 5,9 milhões em todo o Brasil.

Manter o principal, investir os rendimentos

A aplicação financeira das doações segue as deliberações do corpo de governança do Baobá:

  • uma Assembleia Geral composta de nomes históricos da militância negra;
  • um Conselho Deliberativo com integrantes como a escritora Sueli Carneiro e a atriz Taís Araújo;
  • um Conselho Fiscal e um Comitê de Investimentos;
  • resultados verificados por empresas de auditoria.

Hoje, o fundo mantém uma “escrow account” com a Fundação Kellogg – uma espécie de conta corrente para receber depósitos vinculados a garantias ou cláusulas contratuais.

“Se você é doador, pessoa física ou empresa, e nos dá R$ 100 mil, a gente usa no projeto combinado; por exemplo, formação em inglês para jovens. Aí a Kellogg põe mais R$ 300 mil no patrimonial, e isso fica ali, quietinho.”

Na gestão desses recursos, sobressai uma premissa comum em fundos patrimoniais: risco zero de perder o principal.

E essa pegada permanece, a despeito das flexibilizações da lei 13.800/2019, promulgada a reboque do incêndio no Museu Nacional, em 2018, que, vale ressaltar, não contemplou um pleito antigo do setor de filantropia de permitir a dedução das doações do imposto de renda devido.

“Diferente dos fundos de investimento, em que se reinveste com perspectiva de lucro, o patrimonial se baseia em preservar o principal e trabalhar apenas com os rendimentos. Daí a perenidade”, Selma explica.

Segundo ela, regras do Baobá permitem resgates de no máximo 5% dos rendimentos, com base na média móvel dos três anos anteriores, e a primeira retirada dessa natureza só será realizada neste ano.

Interessados em doar para o Fundo Baobá devem entrar em contato pela aba “faça sua doação” no site da entidade, ou podem escrever para a diretora executiva no e-mail: [email protected].

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