Com tanta oferta de calçados – genéricos, de marca, feito em Franca, made in China, made in trabalho escravo – fica difícil relembrar a simbologia de ter os pés descalços. Mas volta e meia, pessoas mais velhas contam histórias envolvendo sapatos.
Outro dia mesmo, uma senhora me narrou uma passagem comum a crianças pobres. Disse ela: “Minha irmã e eu dividíamos um único calçado. Ela estudava de manhã, eu à tarde. Daí, eu esperava por ela na esquina da escola. Então eu calçava os sapatinhos e minha irmã seguia descalça para nossa casa.”
No começo do século XX, o centro do Rio de Janeiro, então capital federal, foi sacudido por uma grande reforma. Para dar lugar à Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, foram demolidas centenas de casas e desalojadas milhares de pessoas. A concepção arquitetônica vinha, é claro, da Europa.
Pronta a reforma, o prefeito Pereira Passos baixou uma série de restrições. Entre elas, ficava proibido andar descalço pelas ruas do centro. Houve quem interpretasse a proibição como um desejo de civilizar os sem-alpargatas. Outros entenderam que ao proibir os “pés descalços”, a elite carioca estava expulsando os pobres do então cartão-postal da capital do país.
Uma vez estive em Curaçao, no Caribe, para escrever um roteiro de vídeo que vendia as belezas da ilha aos turistas brasileiros. Minha simpática cicerone contou a história da famosa ponte móvel Rainha Emma, construída nos anos 1880. A ponte é só para pedestres e se abre para a passagem de transatlânticos e petroleiros.
Pois quando a ponte ficou pronta, as autoridades decidiram cobrar pedágio dos transeuntes. Mas por justiça, quem estivesse descalço não precisaria pagar. “Sabe o que aconteceu?”, ela me perguntou.
Respondi no ato: “Todo mundo tirou os sapatos para atravessar de graça.” Ela esclareceu: “Muito ao contrário. Quem não tinha calçados pedia emprestado ou até alugava um par.” Fiquei surpresa. Naquele momento pensei: como as culturas podem ser diferentes.
Depois, refletindo, acho que encontrei uma melhor explicação. A de que ninguém gosta de ostentar a própria pobreza. Ninguém quer exibir para o mundo os pés descalços pela impossibilidade de comprar um simples chinelo.
Fonte: Yahoo