Prefeitura de SP reduz em 37,5% verba para combate à violência doméstica

A cidade de São Paulo reduzirá em 37,5% a verba destinada a três programas de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica nos próximos quatro anos.

Se em 2021 a Prefeitura de São Paulo estimou que gastaria R$ 32 milhões com esses programas, entre 2022 e 2025, o gasto médio previsto cairá para R$ 20 milhões por ano.

Os cortes, identificados pelo “mandato coletivo” do PSOL e confirmado pelo UOL, estão previstos no Plano Plurianual para o quadriênio 2022-2025, projeto encaminhado à Câmara Municipal pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) com o planejamento para seus programas, ações e metas.

Aprovado pelos vereadores em primeira votação no dia 2 de dezembro, o texto prevê cortes paulatinos na Central de Vagas para Acolhimento —responsável pela gestão dessas vagas—, na operação e manutenção de equipamentos para atendimento a mulheres e no auxílio aluguel destinado às vítimas de violência doméstica.

Os valores efetivamente gastos nos próximos ano, no entanto, podem ser ainda menores. Este ano, por exemplo, dos R$ 32 milhões previstos apenas R$ 29,8 milhões foram desembolsados pela prefeitura.

Segundo a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o orçamento para 2022 “será suficiente” para manter as políticas atuais mesmo “com a previsão de um aumento da demanda por atendimento proporcional ao registrado nos últimos anos e, portanto, não haverá queda no investimento”.

“Fui expulsa de casa”

Cláudia (nome fictício), 42, acaba de receber o auxílio-aluguel pela primeira vez. Casada há 5 anos, ela já era vítima de agressões verbais, que este ano descambaram para a violência física quando descobriu que era traída.

“Ele veio para cima de mim, me empurrou na parede e me deixou com hematomas nos braços e nas pernas”, conta ela, que só descobriu na delegacia que também era abusada sexualmente.

“A lei diz que quando você não quer ter relação sexual com o marido, isso passa a ser estupro. Eu não sabia disso até fazer o exame de corpo de delito”, conta ela, que era proibida de receber em casa a visita dos filhos, frutos de uma antiga relação.

Depois de uma nova briga, Cláudia acabou expulsa de casa pelo parceiro, “que ficou com tudo o que era meu”. Desemprega, hipertensa e em depressão, Cláudia recorreu a uma ONG, que em outubro a ajudou a pedir o auxilio-aluguel na prefeitura.

Embora o dinheiro estivesse previsto para cair na conta em novembro, os R$ 400 foi depositado no dia 13 de dezembro, quase dois meses depois do pedido. Com o dinheiro, ela conseguiu alugar uma casa em uma favela na Brasilândia, zona norte, que lhe custa R$ 650 por mês, “fora água e luz”.

Questionada, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania garante que “todos os pagamentos do auxílio aluguel destinado a mulheres vítimas de violência doméstica atendidas pela rede municipal estão regularizados e sendo pagos normalmente às beneficiárias”, diz em nota.

Presidente da Associação Artemis —uma referência à deusa grega protetora das mulheres—, Raquel Marques afirma que a violência doméstica começa como ofensa. “Aí o homem impede o ir e vir da mulher, depois restringe bens e dinheiro até chegar à violência física e morte.”

“Para sair desse ciclo”, afirma, “elas precisam de suporte”.

Na hora em que o estado diminui a verba de políticas para prevenir formas graves de violência contra a mulher, ele acaba se tornando cúmplice, responsável por omissão.”

Raquel Marques, presidente da Associação Artemis

Advogada criminalista, a covereadora Paula Nunes (PSOL) diz que “o orçamento é onde se expressam as verdadeiras prioridades do município”.

“Ouvimos muito dessa gestão que teriam foco em enfrentar as desigualdades sociais. A violência doméstica deve ser encarada como um aspecto da desigualdade. Mas o que vemos com estes cortes é que as mulheres mais uma vez ficarão abandonadas à própria sorte”, afirma.

A secretaria diz que as verbas orçamentárias “poderão ser remanejadas entre seus diversos programas e serviços, sempre de acordo com as normas da administração e seguindo o interesse público”.

41 milhões de vítimas

Pesquisa sobre violência doméstica na pandemia encomendada pelo Instituto Patrícia Galvão ao Instituto Locomotiva indica que 37% das mulheres já sofreram violência de um parceiro ou ex, percentual que salta para 50% —41 milhões de brasileiras— quando as entrevistadas são colocadas diante de situações hipotéticas de violência doméstica.

Na mesma pesquisa, 80% das mulheres afirmaram que, apesar de bons, os serviços de atendimentos às vítimas “são escassos”. E para 87%, elas sairiam mais rápido e com menos traumas da relação violenta se os governos apoiassem mais as mulheres que sofrem esse tipo de crime.

“A percepção de falta de acolhimento às vítimas acaba desmobilizando as denúncias”, diz Maíra Saruê Machado, diretora de pesquisa do Locomotiva. “É preciso agir rápido na consolidação das portas de saída para que seja possível romper com o ciclo de violência.”

Pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública informa que 48,8% das vítimas relataram que a violência mais grave vivenciada no último ano aconteceu dentro de casa.

Vice-presidente do Instituto Maria Da Penha, Regina Célia Barbosa diz que o artigo 8 da Lei Maria da Penha exige que governo federal, estados, municípios, terceiro setor e iniciativa privada “formulem juntos políticas para combater os diversos tipos de violência contra a mulher”.

“Quinze anos depois da Lei Maria da Penha, e o investimento nessa área, que já é pequeno, agora será diminuindo em São Paulo”, diz. “Ao reduzir os gastos, a qualidade do atendimento a essas mulheres cai. Elas precisam desse acolhimento até que estejam reestruturadas para abrirem mão dos benefícios.”

Raquel Marques, da Artemis, lamenta que “as contas da prefeitura sejam ajustadas à custa da integridade das mulheres”. “Para a conta fechar, elas pagam o pato”, afirma.

Mesmo que a prefeitura diga que vem fazendo mais com menos dinheiro, ainda é insuficiente porque a violência doméstica não diminui. O atendimento pode até continuar, mas e a qualidade do serviço?”

Raquel Marques, presidente da Associação Artemis

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