Preta Simoa e a Abolição no Ceará: uma história de esquecimento – Por: Jarid Arraes

Hoje, 25 de Março, é feriado estadual no Ceará: o Dia da Abolição da Escravidão. Assim, vale lembrar que há muito a ser explorado sobre as questões raciais e as formas como se articulam com outras formas de opressão. Uma das principais especificidades é quanto à invisibilidade política da mulher negra. Ser uma mulher negra certamente é uma experiência de vida bastante diferente de ser uma mulher branca. As estatísticas de órgãos como IBGE e IPEA e os relatos de vivência de ambos os grupos demonstram essa realidade. Mas a mulher negra nordestina, e ainda cearense, leva sobre seus ombros peculiaridades ainda mais pesadas.

Muitas mulheres negras foram de grande influência na formação da história brasileira, mas tiveram suas lutas omitidas e apagadas. Por exemplo, uma importante protagonista na história da Abolição da Escravidão no Ceará foi a Tia Simoa. Esquecida nos relatos formais e militantes, Tia Simoa teve um papel impactante na luta contra a escravatura, embora a maioria das pessoas não conheçam sua atuação ou sequer saibam da sua existência.

Para falar a respeito do tema, o Questão de Gênero traz uma entrevista com Karla “AgreSilva” Alves, integrante do Grupo de Mulheres Negras do Cariri, o Pretas Simoa. As ações do Pretas Simoa vem causando um verdadeiro rebuliço no interior do Ceará, contando com uma política assertiva de enfrentamento e trazendo foco para a luta das mulheres negras. Leia a entrevista a seguir:

O que motivou a criação do grupo Pretas Simoa? Como chegaram ao nome do coletivo?
Muitas das integrantes do grupo já atuavam em movimentos organizados como o movimento estudantil, o movimento de mulheres ou o movimento negro, como é o meu caso. Contudo, apesar desse engajamento político ter nos colocado, em algum momento, no mesmo caminho, a verdadeira motivação para a criação de um grupo de mulheres negras surgiu do nosso reconhecimento umas das outras, assim como do nosso ressentimento conjunto sobre a ausência de especificidades no tocante a questão gênero e raça na seara dos movimentos a que pertencíamos. Após um percurso em busca de um nome que nos identificasse, cheguei à história sobre a Preta Tia Simoa quase que por acaso, por meio de uma pesquisa acadêmica que resultou em um artigo sobre seu companheiro, José Luís Napoleão. Me chamou atenção ver que, apesar de sua importante participação nos acontecimentos do 27, 30 e 31 de Janeiro de 1881, havia tão pouco sobre sua história. Dessa forma, sua invisibilidade se tornou para nós uma ilustração da história da população negra no Ceará e, mais precisamente, da mulher negra no Ceará, conforme descrevo no texto publicado em nosso blogue.

Muitas ativistas do movimento feminista e até mesmo do movimento negro não sabem quem foi Tia Simoa. A que você atribui essa dificuldade?
Até pouco tempo atrás nenhuma de nós sabíamos da existência da Preta Simoa, tampouco de sua história. Atribuo essa lacuna historiográfica a uma falsa premissa sobre a invisibilidade das pessoas negras no Ceará, algo que ainda persiste no discurso acadêmico e que nos causa um profundo descontentamento e revolta. Apesar dos esforços de alguns pesquisadores na temática, que se dedicam a reescrever a história da população negra no Estado, não vemos a influencia destas pesquisas nas práticas educacionais. Esta realidade de omissão de nossa história amputa nossa representação na história nacional e contribui para a manutenção dos estereótipos que pesam sobre os nossos ombros. Precisamos nós escrever, contar e gritar a nossa história para que nos ouçam.

Assim como a Tia Simoa, muitas mulheres negras são ignoradas e invisibilizadas, mesmo que tenham histórias intensas e duradouras de atuação política. O fato da Tia Simoa ser nordestina e do Ceará acentua esse apagamento?
Eu acredito que sim. Há muito sentimos o esquecimento por parte da política nacional e no que se refere aos movimentos organizados não é diferente, pois muitas vezes nos esforçamos muito e em vão para dar visibilidade a denúncias e reivindicações locais que não ultrapassam a fronteira regional, quando muito, mesmo estando em consonância com os contextos nacionais em que se inscrevem. O que parece é que existe uma espécie “sudestinocracia”, onde só se torna legítimo o que pertence ao eixo Rio-São Paulo, e mesmo quando levam em conta a realidade da população negra nordestina, se dá de forma resumida a Bahia, ou melhor, a Salvador. Dessa forma, a história da Preta Simoa abrange diversas reivindicações das negras cearenses organizadas que sentem a necessidade de evidenciar sua existência, sua representação histórica, seu engajamento político e as demandas específicas que compõem o tecido de sua luta e que precisam ser inseridas nas políticas públicas nacionais.

Qual a relação entre a memória de Dragão do Mar e da Tia Simoa? É possível problematizar as relações sexistas que evidenciam a luta masculina, mas preterem a luta feminina?
Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar que durante o processo abolicionista cearense era conhecido como Chico da Matilde, ganhou toda credibilidade pela luta por liberdade no Ceará. Contudo, o fazer, ou contar, história nos ensina que ao lado da luz que se coloca sobre um objeto existem muitas sombras e, nestas sombras descansam inúmeros outros objetos em silêncio. Um desses elementos esquecidos nas sombras é a fundamental participação da Preta Simoa, que usou de sua sociabilidade para mobilizar a população local em apoio a greve dos Jangadeiros, acontecimento que determinou os fatos que se sucederam até o decreto que estabeleceria o fim da escravidão. É possível estabelecer diversos paralelos entre o enaltecimento de uma história em detrimento de outra, dentre eles as relações sexistas somada à condição étnica, que se refletem nos grandes ícones de nossa história. A título de exemplo, não poderia deixar de mencionar a história da cidade de Juazeiro do Norte em torno da figura do Padre Cícero que, como “obreiro” do milagre, teve sua história enaltecida relegando ao esquecimento a figura da Beata Maria de Araújo, outra mulher negra cearense sem túmulo e sem memória.

No Dia da Abolição da Escravidão no Ceará, o que pode ser questionado em relação a data?
Alguns dos questionamentos a se fazer são os mesmos em torno do 13 de Maio: esse é mesmo um dia de pessoas negras? Temos mesmo o que comemorar nesta data? Mas há certos aspectos que devem ser analisados sob a ótica específica que leva em conta a contextualização local, como por exemplo, os fatores socioeconômicos que contribuíram para esse pioneirismo cearense. Contudo, há dois principais elementos que, a meu ver, não podem passar despercebidos: o primeiro deles é sobre os personagens exaltados no discurso sobre a abolição, conforme discorro no texto. O segundo é sobre o mito da “Terra da Luz” que, ao se estabelecer, omite a manutenção do trabalho servil no município cearense de Milagres. São questões fundamentais para uma análise apropriada do discurso sobre os fatos.

O Grupo Pretas Simoa é atuante principalmente na região do Cariri, interior do Ceará. Nessa perspectiva, há diferenças entre a realidade das mulheres negras caririenses e a realidade das mulheres negras da capital cearense e até mesmo de outros grandes centros urbanos?
Posso pontuar alguns aspectos sobre as diferenças entre a realidade da mulher negra do interior e da capital. O principal deles é a distância dos debates intelectuais e das instâncias do poder constituídos, que dificultam nossa representação nos embates políticos que se estabelecem na ceifa dos órgãos institucionais voltados para temática. Em relação às que residem nos grandes centros urbanos essa diferença se potencializa significativamente. Ainda há um agravante no tocante à nossa realidade aqui no Cariri cearense onde atribuem uma formação predominantemente indígena. Ainda estamos na luta pelo direito de ser negra, pois ao nos identificarmos desta forma ouvimos constantemente a “correção” dos moradores locais que, quando não perguntam se somos da Bahia, aconselham que não façamos isso com nós mesmas, pois somos “muito bonitas para sermos negras”.

Toda história de abolição de regimes escravistas é muito mais profunda do que demonstram as narrativas mais populares. A vida e atuação da Preta Simoa é uma forte demonstração de como nossos livros, discursos e estudos estão longe do verdadeiro reconhecimento da luta negra e, especialmente, da luta da mulher negra.

O grupo de pretas que carrega o nome da Tia Simoa tem um importante papel de desbravar territórios e conhecimentos limitados. Mas essa atitude não deve ser delegada a um único coletivo, pelo contrário, é papel do povo brasileiro conhecer a sua verdadeira história.

Foto: Lino Fly Kariri. “Da senzala ao cartão postal: a objetificação da mulher negra.”

Francisco Nascimento – O Dragão do Mar 

Hoje na História, 1881, o Dragão do Mar”, lidera o movimento de jangadeiros no Ceará, impedindo o transporte de escravos nas jangadas

Fonte: Questão de Genero

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