Engajada em movimentos sociais e defensora das minorias, ela deseja que seu exemplo possa ser seguido por outras pessoas que sofrem o mesmo drama
O encontro foi marcado na Universidade de Brasília (UnB) ao meio-dia e meia da quinta-feira chuvosa. Lá estava ela, pontualmente. O ambiente lhe é muito familiar. Afinal, as mais recentes conquistas — aquelas que conduziram e ainda conduzirão seu destino profissional — ali aconteceram. De longe, avista-se aquela mulher negra, de 1,77m e 75 kg. O peso só foi revelado depois. Talvez, depois da idade, seja o maior e mais temido segredo de qualquer mulher. Os cabelos, em aplique, são médios e cuidadosamente cacheados. Veste terninho bege, com blusa de seda preta. Os sapatos, de salto alto, combinam com a blusa. A bolsa também é preta.
Nos dedos da mão direita, dois grandes anéis. E uma aliança muito especial no anelar da esquerda. É a prova do compromisso de casamento. A moça ainda vive a lua de mel. O noivo — um homem solteiro, jornalista, pai de três filhos — mora no Rio de Janeiro, mas se prepara para mudar-se para Brasília. A fala é delicada, sutilmente delicada. Não há falsete. Ela anda sem rebolar, sem estardalhaços, sem provocações. Não faz questão de chocar. A moça, de 31 anos, além de elegante, é discreta. Tem o sorriso bonito, às vezes tímido, como se ainda tivesse medo de sorrir. Dentes perfeitos. Olhos amendoados realçados com lápis preto e sombra. Nas unhas, esmalte vermelho. Nos lábios, batom do mesmo tom.
O nome dela? Jaqueline Jesus. Brasiliense, nascida no Hospital São Lucas, na Asa Sul. É filha de um sergipano operador de computador e de uma professora mineira de ciências. Família pequena, só tem um irmão, mais novo que ela. Jaqueline viveu a maior parte de sua vida em Ceilândia, no Setor O. Estudou em escolas com formação religiosa. Sempre foi uma das melhores alunas da sala. Gostava de artes , especialmente desenho. É funcionária da UnB, cedida ao Ministério do Planejamento. Formou-se em psicologia na universidade. Antes, porém, havia passado para química, mas desistiu no primeiro ano.
Fez mestrado — foi aprovada em primeiro lugar. Ano que vem, defenderá sua tese de doutorado no Instituto de Psicologia da UnB. Em tempo: também foi aprovada em primeiro lugar na seleção para o doutorado. Em tudo que se propôs fazer, Jaqueline se destacou como exemplo.
E daí? O que esta história tem de tão espetacular, além de revelar uma enorme capacidade de luta e conquista dessa moça? Quantos outros também não conseguiram tanto? A história de Jaqueline começa a fazer toda a diferença quando se descobre que ela nem sempre foi Jaqueline. Como? Jaqueline é uma impostora? Usou documentos de outra pessoa? Fraudou exames? Mentiu para todos o tempo todo? Nada disso. Na verdade, Jaqueline nasceu Jaques Jesus. Há um mês virou, efetiva, assumida e psicologicamente Jaqueline — uma mulher transexual (leia Para saber mais).
Preconceito
Esta história começa pelo fim. Mas, para entendê-la, é preciso voltar ao começo. O menino Jaques sempre foi delicadamente diferente. “Aos 6 anos, minha tia percebeu que eu não era como os outros meninos. Gostava de bonecas. Cheguei até a fazer casinhas de papelão pra elas, mesmo que não as tivesse por perto. Fingia que elas existiam e brincava assim mesmo. Não me identificava com nada de menino”, conta Jaqueline.
Aos 12 anos, além da tia, do pai, da mãe, dos parentes mais próximos e até de alguns vizinhos, todos sabiam que o filho do operador de computador e da professora era “diferente”. “Delicado demais”, cochichavam alguns, à meia-boca. A palavra homossexual jamais fora pronunciada. “Com 12 anos, tive a minha primeira relação com um garoto. Foi quando descobri que realmente me sentia atraída por homens.”
Jaqueline se tornou adolescente. Na escola — e fora dela —, sofreu toda sorte de preconceitos. “Os meninos me perseguiam, me agrediam verbalmente”, diz. Ainda assim, engolindo o choro, ela não tinha dúvida da sua orientação. “Aos poucos, fui construindo a minha identidade sexual e me vendo como um rapaz gay. O preconceito era duplo: além de negro, eu era gay.” O adolescente gay se tornou um homem gay. Passou a discutir questões da sexualidade, diversidade e os direitos das minorias. Engajou-se, para se sentir vivo.
Em 1997, aos 19 anos, começou a cursar psicologia. Na mesma época, Jaqueline entrou para a militância do Movimento de Gays, Lésbicas e Transgêneros (GLBT) de Brasília. Presidiu o Grupo Estruturação. Lutou por aquilo em que acreditava. Foi recebida por autoridades. Algumas conquistas se somaram. Em casa, porém, a homossexualidade de Jaques não era comentada. Assunto nunca dito. Palavra jamais pronunciada. O silêncio se fez respeito. Em 2000, aos 22 anos, mudou-se para o Plano Piloto. Foi morar com o primeiro companheiro. A relação durou 12 anos. “Ele terminou comigo assim que dei início ao meu processo de transformação. Disse que não saberia viver com uma mulher. Eu entendi. Sofri muito. Ficou a amizade.”
Carta
Jaqueline mergulhou na análise. “Me perguntava o tempo todo: ‘Será que sou mesmo transexual?’. Passei por momentos de muita angústia.” Com a ajuda da terapeuta, descobriu aos poucos que não desejava se sentir um homem homossexual, mas uma mulher. “Era a minha própria identidade de gênero”, explica. Ela começou a frequentar o grupo de transexuais do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Ouviu depoimentos de outros transexuais — homens e mulheres.
Jaqueline leu tudo a respeito do assunto. Procurou médicos e uma fonoaudióloga. Em maio deste ano, começou a usar hormônios, receitados por uma endocrinologista. E sentiu, aos poucos, as transformações físicas no seu corpo. Cresceram os seios. As feições ficaram mais delicadas, mais femininas. Os pelos, que eram poucos, hoje são eliminados com depilação a laser.
E é chegada a hora de mudar o guarda-roupa. Ternos, gravatas e sapatos deram lugar a terninhos, vestidos e saltos. “Doei todas as roupas masculinas.” Tudo pronto para a nova mulher que ela já sabia existir. E como enfrentar os colegas de trabalho, no ministério? Como sair Jaques, na sexta, e voltar Jaqueline, na segunda?
Com a formação em psicologia e o apoio recebido durante os anos de terapia, Jaqueline fez uma carta aos colegas do ministério. “Eu explicava todo o processo da minha transexualidade. E dizia que um dia chegaria vestida como de fato me sentia. Tive uma reunião com a chefia. O psicólogo do HUB foi ao meu trabalho”, detalha. Há um mês, Jaqueline se vestiu pela primeira vez como mulher. “Logo que cheguei, os porteiros comentaram que eu tava muito bonita. Me senti segura.”
Cirurgia
Alguns transexuais optam pela cirurgia radical de mudança de sexo — procedimento reconhecido e autorizado pelo Sistema Único de Saúde. Não aceitam de forma alguma a genitália masculina. Em casos extremos, quando não recebem apoio psicológico e não conseguem operar, chegam à automutilação e ao suicídio. Jaqueline faz acompanhamento no HUB justamente para decidir se quer ou não a cirurgia. “Meu órgão genital não me causa repugnância. Operar é uma decisão que requer análise e maturidade. E nenhuma dúvida”, reflete a doutoranda da UnB.
A luta agora é para conseguir mudar, na Justiça, o nome e, se possível, o gênero — feminino — nos novos documentos. “Juntarei os laudos médicos e darei para o meu advogado. O que fiz foi ajustar o meu corpo à minha identidade social”, explica. Com os olhos marejados, reconhece, ajeitando a aliança: “Consegui sair de dentro de mim mesma. Isso é renascimento”.
No Instituto de Psicologia da UnB, a torcida pela aluna do doutorado é unânime. “Há muito tempo não via a Jaqueline. Na verdade, a última vez que a vi, ela era Jaques. Esse é um momento histórico para toda a academia. Alguém que assume essa transformação, não apenas no ambiente privado, tem uma atitude política, no sentido de dizer que é possível sermos diversos, com nossas opções, escolhas, orientações, seja qual o nome se queira dar. O ser humano tem que estar bem na pele dele — seja com saia ou calça. E precisa ser reconhecido e aceito assim na sociedade”, defende a professora de Jaqueline, Ângela Almeida.
Ainda comovida com a nova aluna e tentando usar o pronome corretamente (“isso virá com o tempo”, explica), Ângela continua “Ele (ela) sempre foi brilhante e impertinente. Lutou pelo respeito e pela não homofobia”. Danielle Coenga, colega do mestrado, emenda: “Ela tá colocando em prática o discurso politicamente correto. É como se dissesse: ‘Eu sou isso aqui…’”. Para Sandra Studart, psicóloga e coordenadora do grupo de transexuais do HUB, a vitória de Jaqueline ajuda a sociedade a compreender melhor o universo dos transexuais: “Isso quebra o estigma da marginalidade, da prostituição e do subemprego que normalmente cerca essas pessoas”. Jaqueline é a primeira mulher transexual brasiliene a chegar ao doutorado na UnB.
Se no ambiente de trabalho e na academia a aceitação foi normal, em casa não houve tanto espanto. É bem verdade que o pai preferia ter um filho homossexual a uma mulher transexual. “Ele acha que o preconceito seria menor.” A mãe morreu há dois anos. “Ela entenderia bem. Sempre me aceitou”, diz. O irmão apresentou-a à namorada como irmã. No casamento de uma prima, Jaqueline se mostrou pela primeira vez vestida de mulher. Levou o novo companheiro. A avó, de 89 anos, olhou-a com compaixão e lhe disse, na frente de todos: “Minha filha, se você tá feliz, é isso que importa”. Todos entenderam. Novamente o silêncio se fez respeito.
E o que Jaqueline quer mais? “Terminar meu doutorado, viver com o meu companheiro e lutar por todas as causas sociais e contra quaisquer formas de discriminação. É isso que sonhei a vida toda. Minha luta não será em vão.” Antes de qualquer coisa, esta é uma história feita de demasiada coragem.
Para saber mais
Quando o gênero é incompatível
Assista videoreportagem
Transexualismo é a condição clínica em que se encontra um indivíduo biologicamente normal e, que segundo sua história pessoal e clínica e exames psiquiátricos, apresenta o sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático. Portanto, um indivíduo que se encontra nesta condição tem uma autoimagem invertida e, por isso, se sente diferente (espécie/gênero) daquilo que fisicamente o representa (sexo/órgão). Isolado por esta disparidade, necessita se afirmar socialmente, inclusive em seu papel sexual, como pertencente ao sexo oposto.
Uma mulher transexual é uma pessoa que foi designada física e culturalmente como homem, no nascimento, mas que percebe a si, e espera que as pessoas a identifiquem como uma mulher. Algumas mulheres trans podem optar ou não por realizar uma cirurgia de redesignação sexual. Outras ainda podem não desejar fazê-lo. Isso porque partem do princípio de que mulher é acima de tudo uma condição social e não física.