Príncipe natureza e as artes da liberdade no Rio de Janeiro do século XIX

Esse não é mais um texto sobre africanos escravizados nas ruas do Rio de Janeiro do século XIX. Sim, você leu corretamente! Esse texto é sobre como pessoas negras traçaram estratégias de sobrevivência e existência numa das maiores cidades escravistas do mundo. Esse é um texto sobre como o africano liberto Miguel Manoel Pereira da Natureza, o Príncipe de Sobá Gorá Vange ou somente Príncipe Natureza, passou de um escravizado dos frades beneditinos a “orador das turbas” e, por fim, Príncipe, no Rio de Janeiro.

Miguel Manoel Pereira da Natureza, o Príncipe Natureza. Fonte: Ilustração de Bordalo Pinheiro reproduzida no jornal O Besouro, de 11 de maio de 1878, p. 48.

Em seu livro Festas e Tradições Populares do Brasil, de Alexandre José de Mello Moraes Filho, cronista das ruas do Rio de Janeiro no século XIX, no capítulo intitulado “Tipos da Rua”, apresenta uma ilustração, a única imagem de Miguel Manoel Pereira da Natureza. Ao descrever Miguel, Mello Moraes Filho informa que ele era um homem negro de estatura regular, cheio de corpo, maior de quarenta anos, cabelos crespos volumosos e uma barba cerrada. Ele se apresentava nas conferências trajando preto, de colete aberto, de luvas de algodão branco, de botinas largas. Lembrem-se, esse não é mais um texto sobre africanos escravizados nas ruas do Rio de Janeiro, mas certamente a escravização de pessoas negras foi o catalisador da história de Miguel no Brasil.

Não é surpresa que o tráfico continuou a ocorrer no século XIX mesmo após a sua proibição em 1831, a Lei Bill Aberdeen, em 1845, até o fim definitivo do tráfico com a Lei Eusébio de Queirós, em 1850. Pelo contrário. O que causa surpresa é o fato de as pessoas esquecerem que a condição de escravizado não era inata aos africanos sequestrados e transportados para o Brasil. Diversos governantes africanos e suas famílias foram traficados para o Brasil ao longo da história do tráfico atlântico. Temos diversos exemplos disso, como foram os casos de Ganga Zumba, Aqualtune, Zacimba Gaba, Dom Obá II d’Africa e tantos outros que a história apagou ao longo dos séculos. Em meio a esses “outros” está Miguel Manoel Pereira da Natureza. 

Vejam só, um africano que chegasse ao Brasil após a proibição do tráfico em 1831 teria direito de ser levado de volta para sua terra natal. Mas o caso de Miguel exemplifica como isso raramente ocorreria. Miguel teria pisado pela primeira vez em solo brasileiro em dezembro de 1832, desembarcando na praia de D. Manuel, no Rio de Janeiro. Em seguida, foi comprado como escravo pelos frades do mosteiro de São Bento, onde foi alfabetizado no português e no latim.

Em 1854, após comprar sua liberdade, Miguel foi empregado como servente no quartel general da marinha imperial. Entre 1869 e 1880 Miguel publicou diversas notas nos jornais cariocas. Que valor teriam notas em jornais, não é mesmo? A resposta é: inestimáveis. Sim, inestimáveis!

Embora maioria da população no Rio de Janeiro na segunda metade do XIX, também representávamos a maior parcela da população que não sabia ler ou tinha liberdade para ter acesso à educação. Falamos da cidade com maior número de escravizados nas Américas. Portanto, um africano liberto, letrado e com dinheiro para mandar publicar suas notas e anúncios em jornais realmente não era algo comum. Mais incomum ainda, esse africano liberto, empregado na marinha imperial, se apresentava em suas publicações como “D. Miguel Manoel Pereira da Natureza, católico-apostólico-romano, príncipe Africano, Sobá Gorá Vange, do Conselho de S. M. Católica Fidelíssima Rainha D. Maria II, de Portugal”.

Suas notas versavam sobre um vasto campo de temas, desde a crise do Estado Monárquico versus a Igreja, a revolta do vintém até o rumo dos Voluntários da Pátria e a seca no Ceará. Além disso, anunciava as datas, horários, locais e tópicos abordados em suas conferências públicas. Sim, além de tudo, Miguel Natureza, já no ano de 1877, se lançava em conferências públicas em diversos teatros do Rio de Janeiro, doando parte do lucro de suas apresentações a instituições variadas, incluindo uma sociedade abolicionista carioca. Mais surpreendente ainda são as narrativas encontradas em jornais de época afirmando que todas as suas conferências, sem exceção, sempre moviam um grande número de pessoas, lotando onde quer que Miguel se apresentasse. Afinal de contas, quem não iria querer ver um príncipe africano dissertando sobre assuntos da moda?

Autores como Mello Moraes Filho afirmavam que Miguel, o Príncipe Natureza, chegou a se colocar como inimigo intransigente e irreconciliável dos portugueses, em razão de terem lhe privado de sua soberania e reinado. Para outros como Barreto Filho e Hermeto Lima, Miguel não passava de um negro qualquer que a população decidiu zombar. Complementam ainda que o título de “príncipe”, ostentado por Miguel, não passava de uma piada feita às suas custas, partindo de um documento forjado que lhe teria sido entregue. Entretanto, não houve uma conferência na qual Miguel não se apresentasse como príncipe e ostentasse suas condecorações. 

Tratar o desdobramento desse dado como verdadeiro traz a necessidade de problematizar algumas questões. Primeiro, se esse ocorrido estaria relacionado com o fato de Miguel ser um negro liberto, empregado no quartel da marinha, que realizava conferências públicas e doava parte do lucro de suas apresentações para uma sociedade abolicionista carioca. Devemos ter em mente que se tratava de um africano liberto antes do 13 de maio de 1888 que, além de escrever sobre acontecimentos políticos de sua época em jornais, tomava os palcos das conferências populares e, ao comentar sobre temas relacionados à política, economia e atualidades do seu tempo, fez grande sucesso. Penso que, em dado momento a veracidade ou não de sua realeza tenha se tornado irrelevante, para ele e para a sociedade em geral. Ou, pelo contrário. Ainda que tivesse consciência que o título de “Príncipe Africano” era falso, Miguel pode ter feito uso dele para atrair ainda mais pessoas às suas conferências.

Se por um lado pensar dessa forma é dar protagonismo ao sujeito enquanto ator histórico, por outro, a falsificação desse documento revela uma face nefasta da sociedade daquela época. É possível afirmar que essa falsificação e entrega desse documento a Miguel pode ter sido uma tentativa de mostrar para a sociedade branca que o lugar desse sujeito negro, africano, liberto, letrado, não deveria ser levado a sério, tampouco suas ideias, expressas publicamente, fosse nas conferências ou nos jornais. Portanto, satirizar ou deslocar para o campo do humor toda e qualquer fala pública de Miguel pode ser visto como uma ação gestada por uma sociedade escravista que não aceitava a existência de pessoas negras que estivessem fora do espectro do trabalho braçal. A coisa se agrava ainda mais quando esses sujeitos negros têm a possibilidade de caminharem em direção a lugares de destaque na sociedade, ou mesmo quando esses sujeitos já ocupam esses lugares.

As conferências de Miguel seguiram até agosto de 1880, sendo interrompidas por um hiato que se encerra em abril de 1881. Nesse mês, o Príncipe Natureza retorna às páginas de jornais, não mais com uma conferência, mas em razão de seu falecimento, sendo sepultado no dia nove do referido mês. Três jornais reram a notícia de seu falecimento: um de São Paulo, o  Jornal da Tarde e dois cariocas, o Jornal do Comércio, que apenas noticiou o seu sepultamento, e O Fluminense, de 17 de abril de 1881, onde lemos:

Assim, morreu creio que no exercício da profissão de varredor do arsenal de marinha e foi enterrado quase em segredo. – Entretanto, se o Príncipe Natureza tivesse subido ao trono dos seus maiores, é provável que não fosse dos piores monarcas. A fama de sábio pelo menos havia ele de conquistá-la em seu reino. – Nem era de esperar outra coisa de quem, na humilde posição, conseguiu gozar de celebridade na capital de um grande império civilizado. Se não pode em virtude de não existir ainda a lei eleitoral vigente, ocupar uma cadeira na representação nacional, não deixou por isso de ser o orador querido das multidões, o conferente cheio de eloquência e de hombridade, que, seguindo a mania da época, nunca achou espaço suficiente para conter todos aqueles que queriam ser seus ouvintes. – Descansa em paz, desgraçado príncipe: antes o repouso da morte do que a vida que vivias. Projetos de riqueza, domínio e felicidade, tudo foi sempre para ti um sonho. Roubaram-te, escravizaram-te, trocaram-te o cetro por um cabo de vassoura. […] Se algum dia os teus descendentes vierem ao Brasil procurar os teus restos para juntar aos teus maiores, com as honras devidas, hão de ver que ao menos houve um brasileiro que soube compadecer-se da tua desgraça, que soube fazer-te justiça. – Descansa em paz, desgraçado Príncipe.

A história do Príncipe Natureza é uma de muitas esquecidas entre uma página e outra dos jornais cariocas do século XIX. Uma história que retrata o que Dubois e Paul Gilroy tratam como a dupla consciência dos africanos sequestrados pelos traficantes de escravizados. Ele não foi o servente no quartel da Marinha, ele foi o adorado orador das turbas, das massas, dos desclassificados em uma sociedade onde os seus semelhantes ainda eram mantidos em cativeiro até a morte. Ele não era somente o africano Miguel Manoel Pereira da Natureza, escravizado por portugueses e traficado para o Brasil ilegalmente; ele era o Sobá Gorá Vange, herdeiro de um trono no continente africano. Portanto, esse não é mais um texto sobre um escravizado a circular nas ruas do Rio de Janeiro do século XIX. É sobre soberanos e soberanas de Áfricas diversas, que tiveram suas vidas e liberdades sequestradas. É sobre relembrar que escravizados não iniciam suas vidas através do tráfico. Que a vida dessas pessoas, que surfam entre as frestas e brechas de uma sociedade escravista e racista, apesar dos entraves, impossibilidades e apagamentos, nos deixam pistas de suas histórias, de suas trajetórias em meio a uma conjuntura tão adversa. E que ninguém mais vai os deixar à sombra do esquecimento.

Assista ao vídeo do historiador Vitor Gurgel no Cultne TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula: 

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas);

Ensino Médio: (EM13CHS601) Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país. 

Vitor Gurgel

Graduado e mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História – PPHR da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; Email: [email protected]; Instagram: @gurgel_vitor


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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